28 maio, 2005

JC: Operação Sem-Abrigo

Dizem que não existem super-heróis, ou que estes são imaginários, mas é certo que os podemos encontrar nas ruas do Porto. Espalhados por toda a parte, procuram um ombro amigo, um sorriso, uma voz que lhes aqueça o coração. Difícil é pensar que, de um dia para o outro, se pode ficar sem nada. Resta apenas um recanto na cidade porque esta é pública e as poucas mãos amigas que insistem em ajudar...

Por: Patrícia Rocha

Basta um olhar pela janela do carro para se conseguir ver o que se passa. A cidade enche-se de sem-abrigo, gente a quem a vida pregou uma partida.

Existe uma variedade infinita de pessoas que vivem temporariamente na rua. O sem-abrigo, o mendigo, o vagabundo, ocupam o espaço e o tempo de uma forma bem diferente da nossa.

Mas algo tem de mudar. O sem-abrigo não pode continuar a ser considerado um ‘corpo andante’: ele é também um ser humano que vive nas ruas que todos os dias são pisadas por cidadãos comuns. Já teve uma família, um emprego, dinheiro e, principalmente, um lugar quente e acolhedor.

São seres humanos com o mesmo direito de partilhar informação, de comunicar, de ocupar o banco do jardim, de sentar e pedir um café…

A família dos sem-abrigo não escolhe idades e todos necessitam do mesmo afecto e atenção.
Uns mais escondidos que outros não hesitam em pedir a tal ‘moedinha’ que, dizem eles, «é para comer qualquer coisinha, que já não como desde ontem». Outros limitam-se a vaguear pelas ruas da cidade. O que é certo é que não podemos virar as costas a este problema que de dia para dia parece aumentar.

A equipa é JC!

A Jesus Cristo (JC), ao contrário do que se possa pensar, não é uma instituição, mas sim um grupo de alguns elementos que decidiu unir-se para ajudar aqueles que mais necessitam e que estão sós nesta, para eles, dura vida.

Todos os domingos, às 20 horas, saem para as ruas do Porto com os seus ‘sacos ternura’ para aliviar e matar a fome do sem-abrigo.

Levam um pouco de tudo: bolachas, croissants, salsichas, leite chocolatado, bonés, sapatos, roupa… e o tal miminho que nunca falta: o chocolate que todos adoram.
Se é difícil observar a situação destas pessoas durante o dia, mais difícil se torna ao cair da noite. Recolhem-se e habitam no recanto mais aconchegado, que é sempre o mesmo. No fundo, parecem uma família, pois conhecem-se uns aos outros. Alguns até a têm, mas preferem estar sós na rua, do que maltratados em casa.

Heróis todos os dias

A equipa JC segue sempre os mesmos locais da sua ronda. O primeiro destino é o edifício do Jornal de Noticias, onde se encontra a Sabrina, uma menina de 3 anos que vive com a mãe. Nunca teve uma casa, mas o seu olhar é doce e meigo. Está sempre à espera de um saco mimado, de um brinquedo, de um sorriso.

O Carregal é o destino seguinte, e lá estavam os amigos do costume, na enorme e antiga casa que noutro tempo foi um Lar e que hoje os acolhe, todas as noites.

O Alfredo, sempre com a sua boa disposição, oferece aos presentes um pouco da sua habilidade musical. Estão lá também o António, com uma capacidade enorme para contar histórias e a dona Emília (a avózinha, como é considerada), uma senhora de 76 anos que não admite que falem da sua família, pois esta só lhe trás más recordações. Na hora da despedida fica sempre a chorar, embora saiba que a equipa vai voltar com os tão desejados beijos e carinhos que lhe sabem sempre a tão pouco.

No Hospital de Santo António abriga-se o Vladimir, um ucraniano que vai ficar para sempre agradecido das muletas que a equipa lhe arranjou, pois só assim se consegue manter de pé.
São várias as histórias destas pessoas, cada um tem um motivo para ali estar, ou porque os pais e/ou os filhos os rejeitaram, ou porque o álcool e a droga lhes falou mais alto, enfim, uma infinidade de histórias que fazem pensar e reflectir.

A história de Domingos é interessante: «há 30 anos, tinha eu 12, vivia em Angola com toda a família. A minha mãe trabalhava para uns senhores do continente. Um dia, esses senhores disseram-lhe que vinham à metrópole e que me trariam com eles». A mãe de Domingos limitou-se a aceitar. «Entretanto rebentou a guerra em Angola e os senhores disseram à minha mãe que não iriam mais voltar», e o Domingos ficou entregue a si mesmo, desde os 12 anos.

Mais adiante, na rua Júlio Dinis, e já com o frio a fazer sentir-se na pele, encontramos o Mauro de 19 anos e o Sérgio, um ucraniano que passa os dias à porta do centro comercial Cidade do Porto. Estava triste e aborrecido, pois a promessa de emprego que lhe haviam feito no mercado do Bom Sucesso não se concretizou. Mais uma vez tinha sido enganado.

A Anabela não confia os seus medos a ninguém, a tudo responde com o olhar assustado que a vida lhe tatuou. A uma determinada altura pensei: «Que coragem a destas pessoas. Agora dou valor a tudo o que tenho e preservo!».

O rumo segue agora em direcção à Avenida da Boavista onde se encontram o Hélder e o Luís finalmente de pé, pois os ‘Médicos do Mundo’ tinham estado a tratar deles, a pedido da JC. Um pouco mais à frente está o Avelino sempre com o seu lugar muito limpo e organizado, com a sua única companhia, o seu cão que, como diz, o ditado: “O cão é o melhor amigo do Homem.”

Junto ao Hotel Meridien está o Fernando, sem forças para se levantar. Diz ter HIV, hepatite B, hepatite C, diabetes, cancro, mas ainda chora desesperadamente, «porque tenho dignidade», diz.
No percurso entre o Campo Alegre até Lordelo do Ouro mostra mais uma rapariga de muletas, sem uma perna, a pedir uma esmola a todos os condutores que paravam naquele semáforo.

A Bruna tem 22 anos, ficou sem a perna num acidente de automóvel. Tinha fugido de casa porque o pai a maltratava e, na ilusão de uma vida melhor, aceitou levar ser acompanhante, até ao dia em que engravidou. Foi perdendo o rasto dos seus e acabou sozinha na rua, de braço dado com a droga.

Disse que dormia no bairro do Aleixo e que todo o dinheiro que juntava era para se alimentar daquele vício, que já não consegue largar. Perguntei se existiam mais sem-abrigo e se podia levar-me até lá. De um momento para o outro começaram a aparecer, mais pareciam seres fantasmagóricos.

Foi impossível comunicar com eles. Aceitaram apenas a oferta e recolheram novamente para o único lugar que têm:um cobertor e alguns caixotes, que é tudo o que lhes resta para dormirem mais uma noite.

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