28 maio, 2005

Integração sócio-profissional dos cidadãos invisuais

A Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) é uma instituição particular de Solidariedade Social, de âmbito nacional, que tem como fim a promoção da habilitação dos invisuais e amblíopes para o exercício de um vida em sociedade participativa. Trata-se de um projecto com financiamento do Estado Português, nomeadamente, do Ministério o Trabalho e da Segurança Social e do Fundo Social Europeu.

Por: Sónia Resende

Celeste Cardoso, 47 anos, é telefonista na Universidade Fernando Pessoa (UFP) . Tem um sorriso contagiante e uma agilidade a trabalhar impressionante. “Trim” de um lado, “trim” do outro, os telefones não param, mas Celeste não se atrapalha. “Universidade Fernando Pessoa, fala Celeste Cardoso...!”, quem ouve esta voz do outro lado do telefone não imagina que ali está uma pessoa a quem a vida deu força para lutar contra o inesperado.

Tinha 24 anos quando deu conta que estava a ficar sem visão. Gradualmente, num período de cerca de um ano, os rostos de todos os dias desvaneciam-se aos poucos. Como que a entrar num túnel sem fim onde a luz se ia perdendo. Em contrapartida, a memória e os outros sentidos começaram a aperfeiçoar-se.

O maldito glaucoma que cega cerca de 2,4 milhões de pessoas por ano surgiu sem aviso na vida de Celeste, mas inesperada foi também a força de vontade que teve para continuar a viver. Naquela altura valeu-lhe a ajuda do namorado, com quem estava desde os 22 anos: «ele foi muito importante para mim porque, realmente, foi uma fase que, se estivesse sozinha, não sei se tinha aguentado».

A família também a apoiou muito, mas o amor foi, de facto, o seu último reduto para a sobrevivência emocional e social. Viriam a casar-se quando Celeste tinha 31 anos.

Até aos seus 24 anos chegou a trabalhar, temporariamente, como auxiliar de educação e numa agência de viagens. Nessa altura, poucos anos tinham passado depois do 25 de Abril e a vida de Celeste continuava numa revolução constante à procura de emprego fixo.

Depois, perante a incontornável situação que a viria a afectar, Celeste teve conhecimento que existiam associações que a podiam ajudar. «Foi então que comecei a aprender o braille e fiz uma reabilitação de modo a conseguir maior mobilidade».

O estágio profissional que decidiu fazer na ACAPO, depois de já ter estado a trabalhar durante oito anos também como telefonista, levou-a até à UFP, onde permanece há quatro anos. Admite gostar do que faz, «embora se fosse normo-visual com certeza que gostaria de ter outro tipo de trabalho mas, como invisual, acho que telefonista é o lugar onde podemos ser mais independentes... é tudo uma questão de hábito», define Celeste.

Novas Tecnologias da Comunicação

Quando a Internet começa a ser um elemento quase indispensável na vida das pessoas, também para os invisuais foi criado um software que permite ouvir a informação que os sites contêm. Assim, hoje em dia abrem-se as portas para que os invisuais possam ocupar outros cargos senão os já comuns.

Mas não é fácil viver num país com tantos obstáculos para os invisuais. Andar nas ruas, em edifícios públicos ou no próprio local de trabalho pode tornar-se uma verdadeira aventura.
Embora tenha a facilidade de trabalhar no primeiro andar, Celeste considera que a sua mobilidade é difícil, «se quiser ir ao bar, tenho de ir acompanhada. É difícil descer as escadas e muitas vezes os alunos também se distraem muito. Mesmo que leve a bengala, às vezes nem se apercebem que estou a querer passar».

Saudades é, com certeza, uma palavra talvez demasiado redutora para exprimir o quanto Celeste gostaria de tornar a ver o sol, o mar, as plantas. «Uma coisa que adorava era andar no meio da natureza, ir à praia... e isso eu continuo a fazer, mas sinto-a de outra maneira» confessa, com melancolia.

Mas nos seus olhos vê-se, sobretudo, afecto, quando fala nas sobrinhas, que considera as filhas que nunca teve. «Gostava de ver o rosto delas, mas não consegui porque ceguei pouco antes. A mais velha nasceu passado cerca de dois anos de eu cegar». No entanto, Celeste vê-as com o coração.

Felicidade à vista

João António Moreira, invisual desde os 13 anos, não teve uma integração profissional como Celeste. No entanto é feliz porque, mais que isso, o que ele precisava era de estabilidade social.
Foi um ser humano com todas as suas capacidades, até ao dia que uma ablepsia se apoderou da sua visão. Cegou primeiro da vista esquerda e, apesar de aos 14 anos ter feito uma operação que lhe dava 5% de probabilidade de ficar a ver, acabou por ficar invisual.

Desde os 6 anos que viveu num Colégio interno, em S. Félix da Marinha (Vila Nova de Gaia), que o acolheu a si e aos seus três irmãos. Tinha 17 quando começou a trabalhar na agricultura, numa Quinta, na Madalena (Vila Nova de Gaia). Segundo ele, «os patrões ajudaram-me mas, por outro lado, pagavam mal». Dormia num espigueiro, sem condições para um ser humano, ainda mais sendo invisual. Dormia lá praticamente todos os dias, havendo semanas que nem ia ao colégio. Um dia teve de sair do colégio. Os irmãos, já maiores de idade, tornaram-se desordeiros e foram expulsos. João também teve de acompanhá-los, «disseram-me que eu tinha mais cabeça que os meus irmãos. Por isso tinha que tomar conta deles...!» desabafou.

João era, então, um rapaz responsável e trabalhador. Consigo levou os poucos bens que tinha e também as poucas boas recordações, indo viver para uma pequena casa em Vila Nova de Gaia, onde os quatro rapazes partilhavam a profunda falta de condições.

Aos 26 anos a sua vida começou um novo rumo. Através de um «camarada», como prefere chamar a alguém que o ajudou, conseguiu livrar-se do mundo cruel em que vivia. Foi quando encontrou, em Cinfães do Douro, uma nova forma de viver. Perto do Porto, é no berço espantoso de montanhas bravias que fica a aldeia onde vive. O horizonte fecha-se em volta e o céu parece ali excessivamente baixo. Isolado do mundo, leva um quotidiano sempre igual mas com um saudável estilo de vida.

No desandar dos ponteiros do relógio dá sempre tempo para João lavrar as terras, cuidar dos animais que cria (porcos, galinhas e coelhos) e, ainda, para o convívio entre os poucos habitantes daquele sítio, pessoas que, desde o primeiro momento, sempre o acolheram bem. «São a minha família», diz, aquela que ele nunca teve, pelo menos na verdadeira acpeção da palavra. Os caminhos são feitos de pedras desequilibradas mas, com o seu traquejo, João já aprendeu a conhecê-las.

Hoje tem 28 anos e diz ser um rapaz feliz: «muitas pessoas que conheci gozavam comigo por ser invisual, mas encontrei um camarada que me levou para a aldeia. Não quero voltar para o Porto».

A última coisa que levou da Invicta foi uma companheira. Diana, de 22 anos, residia no colégio onde o João viveu. «Ele ajuda-me muito», diz Diana, feliz por estar ao lado dele. «Só com ele é que aprendi a andar na rua, ir às consultas do médico, às compras, coisa que nunca tinha feito enquanto estive no colégio».

Diana tem uns olhos escuros grandes e expressivos, que revelam a curiosidade de quem viveu poucos dias fora dos muros do colégio. Mas têm um brilho e uma simpatia que demonstram a sua alegria de viver ao lado de João. Uma alegria que o companheiro não vê, mas sente.
João ainda guarda mágoas da sua vida passada, onde quase todos lhe viraram as costas. No entanto, agora tem motivos para sorrir.

ACAPO olha pelos invisuais

O desemprego que afecta a população invisual é um dos problemas que a Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal tenta resolver.

Na delegação do Porto, Diana Benfica (Técnica de Integração Profissional), Natividade Abreu (Assistente Social) e Margarida Gomes (Psicóloga), lutam diariamente pela integração sócio-profissional dos deficientes visuais. Concretizam um projecto que tem como objectivo principal a integração profissional dos invisuais ou, no caso de já terem emprego, melhorar a sua posição profissional.

Para isso há vários passos: o utente inscreve-se na instituição onde é recebido, numa primeira instância, pela psicóloga que irá conduzi-lo num processo de adaptação profissional; depois disso, entra numa outra área que é apoiada pela Técnica de Integração Profissional que tem o papel de contactar as entidades. A Assistente Social faz o elo de ligação, uma vez que os utentes também necessitam ajuda com documentos e outras questões técnicas.

No processo de integração profissional, encontram alguns obstáculos «por parte das empresas há um grande desconhecimento, por isso é um processo moroso» afirma a psicóloga, Margarida Gomes.

Aponta também o dedo aos próprios hospitais, que deveriam passar as prescrições para as ajudas técnicas, «a maior parte deles tem problemas gravíssimos, não só a nível de acessibilidades, mas também pelo próprio desconhecimento daquilo que é necessário, acontecendo que, muitas vezes, nem têm o formulário que deveria ser preenchido nestes casos».
Natividade Abreu integra a equipa de formação profissional através de acções formativas, acessibilidades e revisão de todo o programa que deve ser cumprido. «A parte mais interessante no meu trabalho é as ajudas técnicas, porque são necessárias adaptações para que os invisuais possam desempenhar as suas actividades tão bem como qualquer outra pessoa», diz a Assistente Social.

Diana Benfica está há poucos meses na ACAPO mas avalia positivamente a participação das empresas neste processo de integração profissional. A Técnica de Integração Profissional considera, porém, que «o que acontece, muitas das vezes, é que as entidades que os recebem não estão preparadas a nível das acessibilidades».

Consciente de que também o acesso à informação é um dos principais problemas dos deficientes visuais, a ACAPO dispõe de bibliotecas em braille e sonoras, assim como promove diferentes e variadas acções de âmbito cultural, como idas ao teatro, concertos e actividades desportivas como o goalball. Curiosamente, este desporto surgiu logo após a II Guerra Mundial, criado especificamente para ocupar desportivamente os ex-combatentes que haviam cegado em combate.

As actividades desportivas e culturais desenvolvidas pela Associação têm despertado algum interesse por parte dos utentes. Porém, a Psicóloga considera que existe uma divisão dentro do próprio grupo das pessoas com deficiência visual: «há pessoas que acham que este tipo de actividades são essenciais e gostam de participar, e há outras que não ligam muito e nem respondem a esse tipo de iniciativas que são desenvolvidas».

O cidadão face à deficiência visual

Confrontadas com esta questão, as opiniões são unânimes entre as técnicas que lidam diariamente com esse tipo de situações: felizmente, há uma tendência para tentar ajudar mas que, muitas vezes, acaba por ser inoportuna. A psicóloga Margarida Gomes considera que há uma tendência exagerada de «verem os deficientes visuais no papel de coitadinhos»...

Nos ambientes de trabalho, as pessoas lidam com os deficientes visuais sempre numa base de condescendência. Margarida Gomes considera que «é suposto que uma pessoa que esteja a trabalhar seja autónoma. Dificilmente conseguiremos integrar, num ambiente de trabalho, uma pessoa que tenha défices grandes e que não esteja capacitada para exercer as suas funções».

Segundo dados do INE (2001), são 163569 os portadores de deficiências visuais em Portugal. Vale a pena existir uma instituição que não fecha os olhos a estes problemas.

Sem comentários: