28 janeiro, 2005

Diário infantil de esperanças renovadas

Nove horas e trinta minutos, sexto piso. Saio do elevador e deparo logo com espaços coloridos. Acabo de entrar na ala de Pediatria do Instituto Português de Oncologia do Porto.

Por: Cláudia Ferreira da Silva

Ao longe, olhares curiosos observam tudo ao pormenor. Vejo ansiedade, curiosidade, medo, vergonha e esperança entre tantos outros sentimentos contraditórios.

Depois de se passar, ouve-se um «olá!» tímido e nervoso. É o Ruben. Passados cinco minutos, já está na conversa como se fosse amigo de há muito. O pai, José Silva, explica que hoje, mais uma vez, o Ruben vai ter alta. «Acabou mais uma sessão de quimioterapia. Não sei quando teremos que voltar, mas o importante é que, para já, vamos para casa», diz.

Uns olhos ansiosos pela partida revelam que a alta é o momento mais esperado. Abraçar a mãe e a pequena irmã é o próximo passo. «Sim, porque aqui – explica o pai – temos de viver um dia de cada vez. Este é, aliás, um sentimento partilhado por todos aqueles que diariamente vivem neste piso».

O Ruben é um menino de nove anos com uma vida pela frente. Isso está patente em cada movimento que faz, em cada palavra que profere. Brincalhão, inteligente e com um cálculo mental invulgar, revela que quer continuar a estudar «para um dia ser doutor». Para tal, frequenta todos os dias a sala de aulas do Instituto Português de Oncologia, aí continua com os seus estudos e aprende coisas novas todos os dias, sempre com esperança. Para um futuro próximo, avizinha-se um transplante à medula, cujo doador será a irmã. O Ruben tem leucemia de alto risco.

No quarto em frente encontro a Ana, de seis anos, sentada, a brincar com a mãe. Olha para mim com um sorriso maroto e travesso, e um olhar encantador. Pergunta o que queremos. Acha-me chata e não me quer deixar falar com a mãe. Mostra o brinquedo e explica que é com aquilo que está a aprender as letras e os números, com muitos sons à mistura, para ajudar. Pergunto há quanto tempo ali está: não sabe. «Aqui o tempo passa rápido e como, de cinco em cinco dias, os tratamentos acabam, vou para casa», explica.

Foi-lhe diagnosticado um tumor maligno de órbita, aos quatro anos. Enquanto que o transplante do doador alemão não chega, os seus dias são passados ali, entre o colo da mãe, a dor dos tratamentos e a alegria de aprender, todas as tardes, algo de novo na sala pedagógica. «Ali aprendo, pinto, brinco e porto-me mal como os outros meninos». Para a mãe, Paula, a esperança é o que ainda a traz ali para dar forças à Ana.

Para o Sérgio, as brincadeiras e travessuras normais a um menino de dez anos são limitadas, uma vez que uma doença genética no cérebro o impossibilita quer de andar, quer de brincar. Em Maio deste ano, a mãe Fátima descobriu que o Sérgio também tem um tumor no pescoço. Com um sorriso estampado no rosto, o menino continua a ver os desenhos animados, alheio a tudo o resto que se passa à sua volta. Quando lhe pergunto se sabe o que tem, abana com a cabeça e responde, apenas, que acredita em Jesus.

Nesta ala há muito mais do que médicos, enfermeiros ou auxiliares. Aqui há voluntários da Liga Portuguesa Contra o Cancro, há membros da Associação de Pais e Amigos das Crianças com Cancro (ACREDITAR), há uma professora e várias educadoras.

Aqui, o importante é tratar a criança com cancro e não só o cancro da criança. Para tal, Filomena Cardoso, professora do primeiro ciclo, ajuda todos os dias a que um menino saia da sua sala com um bocadinho de conhecimento a mais. Confessa que o tempo foi o seu grande mestre e a experiência de duas décadas de ensino especial, também.

O carinho pelas crianças levou-a a concorrer ao ensino especial e a ser colocada no IPO, há já três anos. Neste tempo, muitas alegrias e tristezas ocorreram, mas a vontade de ensinar permanece. Revela que, aqui, o ensino se diferencia-se do ensino normal, pela ausência de livros e pela permanência em aulas individualizadas, de acordo com a personalidade e disposição de cada criança. «Aqui não há regras, nem horários. A sala está aberta toda a tarde a cada aluno que quiser e estiver com disposição para aprender», diz Filomena Cardoso.

São 15 horas e a sala de apoio pedagógico está cheia. «A maior dificuldade é mesmo criar uma boa disposição ao aluno quando este sabe que terá que fazer um exame complicado, a qualquer momento», explica a professora. Dos pais, obtém a maior receptividade possível. Todos acham que, com as aulas, os meninos terão uma continuidade no ensino, não quebrando a sua rotina.

A Liga e a Associação ACREDITAR, trabalham em parceria com a constante preocupação em animar e mimar a criança, sem que esta o perceba. São inúmeras as actividades que preparam, desde saídas aos arredores do Porto, até ateliers de pintura ou de teatro.

Vincent Dioh: o mundo através da pintura

Por: Amanda Alves

Vincent Dioh tem nove anos de idade. Aos três foi-lhe diagnosticado autismo, uma perturbação no desenvolvimento. Por essa razão, Vincent não fala. No entanto, desde cedo começou a revelar uma tendência para a pintura: uma outra forma de expressar o que lhe ia na alma. «Começou por buscar canetas e lápis ao escritório de casa e riscava todas as paredes e brinquedos que encontrava», lembra Zélia Rocha, a mãe do menino.

A partir daí, e com o incentivo e apoio de Zélia, Vincent passou a transformar tudo o que tinha ao alcance em quadros e nunca mais deixou de pintar. Apesar de ser filho do pintor Mustapha Dioh, Vincent não herdou as características da sua pintura. Utiliza técnicas únicas no mundo, servindo-se de réguas, colheres e das suas próprias mãos, em vez do tradicional pincel. Acompanha ainda a realização das suas obras com música ambiente.

O seu atelier improvisado mostra-nos a ligação corporal que tem com as tintas e com suas pinturas. O chão e as paredes forradas a papel estão cobertas de um emaranhado de cores que escapam aos quadros.

Fora do atelier, as obras de arte desta criança também são uma presença constante, com quadros espalhados com cuidado pelas paredes, por cima das camas, pelo chão. Algumas estão encaixotadas.

As suas pinturas são abstractas e simbólicas, com uma grande diversidade e exuberância de cores que transmitem dinamismo e movimento. Está bem patente, também, a multiplicidade de imagens sobrepostas num mesmo quadro.

Em qualquer uma das obras, a mãe de Vincent Dioh consegue sempre encontrar uma interpretação e um significado, como é o caso de algumas obras que interpreta como sendo a vida de Cristo: a sua crucificação, o sudário, passagens da Sua vida.

Zélia Rocha já organizou quatro exposições com as obras do filho, mas quer organizar outra: «O Vincent pinta muito depressa e faz muitos quadros e, por isso, já tem muitos que merecem ser mostrados». Inicialmente, Vincent pintava todos os dias, mas como o material de pintura é muito caro, a mãe impôs-lhe dias para pintar.

Durante a semana, Vincent frequenta uma escola do ensino especial, onde já está a aprender a ler e a escrever. Para além disso, é acompanhado com frequência por um médico e uma psicóloga especialista. Quanto ao futuro de Vincent, a mãe prefere não pensar nisso: «Com ele aprendi a viver apenas o presente. Tenho esperanças, mas não tenho expectativas. Penso que Vincent continuará com a pintura que, a cada dia, se revela melhor e mais complexa. Quanto ao resto não sei. Só posso garantir que farei sempre tudo que estiver ao meu alcance para fazer o que for melhor para o meu filho, como tenho feito até agora. Com Vincent reaprendi a viver».

A Comunidade Chinesa em Portugal

A inconfundível lanterna vermelha na porta é tão eficiente como um logótipo. Estamos, sem sombra de dúvida, diante de uma loja de comércio chinês. Guarda-chuvas, telefones, blusas, brinquedos, acumulam-se nas prateleiras numa profusão de cores e estilos que chegam a confundir o mais atento cliente. É neste cenário que se concentra grande parte da população chinesa. Este é também o nosso ponto de partida para conhecer um pouco mais da realidade dos imigrantes chineses em terras lusitanas.

Por: Leonora Gonçalves

Falar com um imigrante chinês revelou-se uma missão quase impossível. «Nô falar bem português!», é frase ouvida vezes sem conta ao abordar comerciantes chineses no Porto. Com grande desconfiança e um sorriso nervoso, os sóbrios imigrantes fecham-se em copas só pela menção da palavra ‘reportagem’, recusando a satisfazer a curiosidade jornalística e, gentilmente, indicando a saída do estabelecimento comercial.

É a muito custo, portanto, que Li Bin vai respondendo às perguntas. Sempre com o olhar por cima dos ombros do entrevistador, para assegurar que nenhum cliente fique mal atendido na loja de comércio chinês, lá vai contando a sua história. Com 34 anos de idade, há três em Portugal, mais especificamente no Porto, Li Bin diz-se satisfeito com a vida. «Estou muito contente, vivo melhor do que na China», conta. Todavia, no início contou com algumas dificuldades na adaptação a uma cultura e costumes tão diferentes dos seus.

Li Bin aponta a traiçoeira língua portuguesa como a sua maior dificuldade: «Tive que decorar algumas frases para falar com os clientes. Hoje, já estou bem melhor, só não entendo quando falam muito rápido», explica.

Quando perguntamos se já se sentiu discriminado, Li Bin desvaloriza a questão: «Os portugueses às vezes não têm muita paciência para entender o que quero dizer, é só isso. Não são mal educados e tratam-me bem».

Li Bin diz não sentir saudades da China, mas dos seus familiares. «Tenho dois irmãos lá [na China] que quero que venham, mas eles têm família e é mais difícil», lamenta. Quanto à possibilidade de voltar, Li Bin olha-nos com um ar sério e sem hesitar responde: «Não! Fico cá. À China não volto».

Retrato Oriental

De acordo com dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de 2002, os chineses já são estimados em 11 mil em território nacional, dos quais apenas cerca de 4500 se encontram em situação legal.

«A procura das melhores condições de vida é o principal motivo da emigração. Hoje, os imigrantes chineses já vêm ao encontro de outros familiares instalados em Portugal e, por isso, sentem-se mais estimulados para emigrar», diz Y Ping Chow, representante da Comunidade Chinesa no Porto. E acrescenta: «Posso dizer que 90% dos chineses que emigram para Portugal vêm para ficar. Primeiro, chegam sozinhos. Depois, quando já estão numa situação estável, trazem os familiares».

Segundo Y Ping Chow, a língua constitui um dos maiores obstáculos para os imigrantes chineses em Portugal. «É muito difícil fazermo-nos entender e trocar ideias em português», afirma. Quando questionado sobre o receio da comunidade chinesa em falar, o representante explica que «muitos chineses ainda não estão legalizados no país e esta pode ser uma das causas do silêncio. Mas também há o facto de serem muito reservados».

Y Ping Chow pensa não haver preconceito dos portugueses em relação à comunidade chinesa: «Os chineses imigrantes em Portugal são bem tratados e aceites». Considera ainda, que a mentalidade dos cidadãos dos dois países em questão é realmente diferente, mas desvaloriza a presença de dificuldades intransponíveis por parte dos imigrantes chineses em Portugal.

O representante da Comunidade Chinesa no Porto justifica o escasso convívio dos imigrantes desse país em Portugal, dizendo que os chineses reúnem-se somente em situações especiais. E dá como exemplo um evento de grande dimensão a ocorrer: o novo ano chinês, uma das poucas oportunidades de congregação dos imigrantes chineses.

No entanto, Chow admite o surgimento de alguns atritos entre nacionais e chineses na área do comércio. «O que existe é uma incompreensão por parte dos comerciantes portugueses em relação às chamadas ‘lojas dos chineses’, por estas apresentarem artigos com um preço muito baixo. Mas esse é um problema que vai desaparecer com o tempo».

Invisibilização’ Chinesa

Chen Xiaohong, investigadora do Centro de Estudos Chineses (CEC) da Universidade Técnica de Lisboa, afirma que os chineses têm o que chama de uma "estratégia de ‘invisibilização’". «Fora do espaço dedicado ao negócio étnico em que é possível haver relações inter-pessoais, a visibilidade dos membros da comunidade é quase inexistente. Estes, curiosamente, não apresentam a necessidade, nem ao nível individual, nem ao nível colectivo, de reconhecimento e aceitação por parte do grupo acolhedor», explica.

«Em Portugal, e mais especificamente no Porto, nota-se a ausência de uma região de concentração de comércio e habitação, do género ‘Chinatown’. E refiro o Porto por ser aqui que a imigração chinesa é mais expressiva», diz Xiaohong.

Aquela investigadora considera que a procura de reconhecimento pela comunidade chinesa passa, quase exclusivamente, pela rentabilidade económica dos seus negócios. De acordo com estudos do CEC, o espaço de venda de produtos, seja em restaurante ou em pronto-a-vestir, é a forma que os chineses encontram para projectar a sua etnicidade e reunir-se como um grupo.

Apesar deste contacto ser considerado impessoal e rápido, é um contacto inter-étnico.
Outro estudo de grande relevância neste âmbito foi realizado por Teresa Teófilo, no âmbito de um curso de Pós-graduação em Multiculturalismo e Relações Interculturais, intitulado "Identidade e Reconhecimento: O Outro Chinês".

Para a investigadora, é fundamental questionar a recepção dos chineses junto da população portuguesa e problematizar a interferência de estereótipos e preconceitos na integração da comunidade imigrante na sociedade acolhedora.

Uma das conclusões da investigação foi a não constatação de qualquer expressão de racismo flagrante, mas sim a presença de alguns estereótipos. Sobre a evolução do relacionamento entre portugueses e chineses, afirma: «através da produção, divulgação e partilha de conhecimento será mais fácil transformar comportamentos discriminatórios, para que o multiculturalismo seja um conceito vivenciável e verificável e não uma mera leitura sociológica das actuais sociedades».

A cura pela música

Em Portugal, esta forma de psicoterapia complementar começa a dar os primeiros passos. Se for devidamente adoptada e desenvolvida,a musicoterapia pode constituir uma opção complementar válida para a reeducação de crianças ou adultos com deficiências motoras, sensoriais ou afectivas, atrasos na linguagem, ou com dificuldades mentais.

Por: Maria Manuel Freitas

O João (nome fictício) é um menino de oito anos e é autista. O autismo é uma perturbação típica do desenvolvimento, a qual se manifesta, normalmente, antes dos três anos.

A doença traduz-se em dificuldades ao nível das interacções sociais na comunicação (atraso ou ausência total no desenvolvimento da linguagem verbal) e no comportamento (incapacidade de se adaptarem a mudanças no seu ambiente frequente; fisicamente, são comportamentos estereotipados, como o balanceamento da cabeça, movimentos com os dedos, saltos e rodopios).

Há três anos que o João frequenta um Gabinete de Psicologia, o Psicorumo, uma associação onde meninos como ele ou com outro tipo de perturbações podem encontrar um apoio terapêutico, nomeadamente, ao nível da Musicoterapia.

Margarida Rocha, musicoterapeuta, acompanha o João há três anos e considera que, apesar de toda a problemática clínica inerente a esta patologia, são visiveis o desenvolvimento e os progressos a vários níveis que o menino tem feito. A mãe partilha a mesma opinião e assegurou-nos que a musicoterapia «tem sido, sem dúvida, a terapia que mais e melhor tem ajudado o João».

Margarida Rocha salienta que, em primeiro lugar, deve ser feita uma avaliação da criança «em contacto directo, valorizando a interacção e analisando as suas respostas». O objectivo é conhecer as reacções da criança perante determinados estímulos musicais: «Se não reage, pressiona-se, mesmo que a reacção seja de rejeição», explica aquela técnica.

Posteriormente, avalia-se a resposta aos instrumentos ou do material circunstancial. «Isso serve para ver como a criança usa e manipula esses objectos, como reage aos sons ambiente», diz Margarida Rocha. Em suma, a musicoterapia procura avaliar as competências da criança ao nível da comunicação verbal, vocal e gestual (comunicação não verbal). No fim de cada sessão, esta terapeuta reúne com a mãe do João para comentar a sessão.

Em mais uma sessão, que a sua mãe autorizou a PESSOAS a assistir, o João mostrou-se afável, sorridente, meigo e muito receptivo ao toque. No aquecimento que deve presidir a cada sessão, foi colocada uma música a tocar. «O objectivo é observar a sua vivência corporal num tempo e num espaço. A reacção ao ritmo é muito importante. Mas, principalmente, é preciso mostrar que essa música tem um fim. Por isso é que ele pára quando a música termina», explica a musicoterapeuta. Em seguida, Margarida proporciona o contacto com os instrumentos.

Há uma interacção musical através de diálogos e improvisações. O João foi respondendo positivamente, com um ou outro olhar desviado durante a actividade o que, embora seja considerado normal, implica o recomeço da terapeuta na captação da sua atenção.

A sessão chega ao fim. O João recebe a mãe na sala, que se senta e o afaga, juntamente com Margarida e um outro menino que aguarda pela sua vez. A mãe do João e a sua terapeuta partilham a alegria do menino com o aproveitamento positivo da sessão. Mãe e filho vão embora, agora para casa, até ao próximo encontro.

Um passado presente

A musicoterapia tem as suas raízes na sabedoria cujas origens se perderam no tempo. O homem antigo desconhecia métodos organizados de "terapia de sons". Mas, na verdade, nem precisava deles, pois conhecia espontaneamente a sua influência. O terror provocado pelos trovões, a tranquilidade do ruído da chuva fina, as melodias produzidas pelos pássaros, o som de uma flauta, são exemplos de sentimentos e efeitos inexplicáveis que sempre atraíram e exerceram forte influência sobre o ser humano.

Segundo a definição aprovada pela Federação Mundial de Musicoterapia, "a musicoterapia tem por objectivo desenvolver potenciais e/ou restaurar funções do indivíduo, a fim de melhorar a sua integração intrapessoal e/ou interpessoal e, em consequência, adquirir uma melhor qualidade de prevenção, reabilitação ou tratamento".

Além disso, numa altura em que somos tão prejudicados pelo barulho, por sons agressivos, pela música dissonante ouvida em volume demasiado alto, a musicoterapia torna-se cada vez mais necessária, dada a incontestável e enorme influência da música e dos sons no equilíbrio do ser humano e em aspectos como: o ritmo cardíaco, a pressão arterial, o equilíbrio térmico, o metabolismo geral, o volume de sangue, a secreção do suco gástrico, entre outros.

A Associação Portuguesa de Musicoterapia (APMT) é uma organização sem fins lucrativos que congrega profissionais de musicoterapia. Segundo Gabriela Gil, vice-presidente da APMT, ainda há muito por fazer: "É preciso lutar pelo reconhecimento oficial da musicoterapia em Portugal, investir na seriedade do exercício da profissão, colaborar com instituições públicas e privadas na definição e concretização de políticas no âmbito da musicoterapia, fomentar o intercâmbio e a difusão de experiências entre os indivíduos e as instituições interessadas em musicoterapia, no país e no estrangeiro".

Para isso, esta organização vai desenvolvendo diversas actividades como seminários, congressos,’ workshops’, sem esquecer a tentativa de dar resposta aos inúmeros pedidos de informação sobre musicoterapia, por e-mail ou por telefone. Permanente será a luta pelo exercício da musicoterapia com seriedade e por profissionais com habilitações adequadas e o empenho em colaborar em iniciativas de divulgação, informação e encaminhamento de serviços na área de Musicoterapia.

Mente Certa em Corpo Errado

«Sou uma mulher que nasceu num corpo estranho» Assim se resume a história de Sílvia, de 35 anos, Ricardo de nascimento.

Por: Cláudia Ferreira da Silva

Sílvia ainda se parece um pouco com um homem, mas é quase uma mulher. «Ser mulher é algo de natural em mim. Trata-se de uma maneira de olhar o mundo. Nós, mulheres, temos um universo próprio. Não tenho uma vagina, mas é exactamente como se tivesse», conta Sílvia, transexual feminino.

De todas as variantes da sexualidade humana, nenhuma é tão incompreendida como a transexualidade, a bizarra experiência de nascer com cromossomas, genitais e hormonas de um sexo, mas ter a convicção íntima de pertencer ao género oposto. Enquanto homossexuais, lésbicas e travestis assumem os órgãos genitais que têm, os transexuais repudiam o que a natureza lhes legou.

Segundo a psicóloga Vera Fonseca, é fundamental destacar a dor e o sofrimento de sentir-se preso a um corpo e viver uma situação social não condizente com o seu estado emocional. «O transexual apresenta um distúrbio de identidade de género, constante e persistente, que evolui na busca da mudança permanente de seu sexo». Mas, muitas vezes, existem condicionantes que perturbam este sonho…

A transexualidade é independente da orientação sexual do sujeito, podendo este ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Sílvia fala como uma mulher, tem tiques próprios das mulheres, como um cuidado especial com o corpo, senta-se e gesticula como só as mulheres sabem.

A voz de Sílvia ainda é grave e masculina, mas desfaz-se nos encantos de tons suaves, educados, cultos. E como se sente com os seus órgãos genitais? Responde sem rodeios: «Não sinto os meus genitais. É como se não os tivesse». Na rua, as pessoas olham e perguntam: é homem ou mulher? Isto na melhor das hipóteses, diz Sílvia, porque, na pior, aparece a injúria, o insulto, a agressão. "Bichas, travestis, maricas", ouve regularmente.

Renata, quarenta anos e de porte esbelto e esguio, vai mais longe. Conta que durante os 20 anos em que se prostituiu, os homens bissexuais eram a maioria dos seus clientes. Procuravam, na sua maioria, sexo oral. Mas havia outros, muito sós, diz, que a procuravam pelo desejo secreto de fazer sexo com um pénis e receber carícias de uma mulher.

«Em minha casa, apesar de todos saberem esta minha opção, a não concordância do meu pai transforma este assunto em tabu», conta Renata, triste. «Eu nunca fui um homem, não sei o que é que um homem sente», diz Sílvia. E sem equívocos, sem hesitar, acrescenta: «Eu sempre fui uma mulher e vivo como qualquer mulher». E era com uma mulher que se parecia, efectivamente.

Sexo. «Quando faço amor, o meu companheiro ignora os meus órgãos. É fácil. Eu sou uma mulher, porto-me na relação em função do feminino e sinto-me assim», conta Sílvia. «Só comecei a ter orgasmos quando assumi a mulher que eu sou, isto é, quando deixei transparecer a minha verdadeira sensibilidade», confessa.

Das duas personagens desta história, apenas Renata se quer submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. O seu nome consta da lista de espera do corredor da esperança dos hospitais portugueses. Renata espera obstinadamente. «Eu tenho um sonho», diz. «Quero ser mulher a todos os níveis», completa.

Renata já foi Rui. No Bilhete de Identidade, assina este nome ao lado de uma fotografia onde a maquilhagem afirma sem despudor que é mulher e os longos cabelos ajudam à aparência feminina. Mostra o BI como consolação, mas sabe que, mesmo sendo operada, isto é, adquirindo plenamente a cidadania da transexual feminina, transformado que foi o pénis numa vagina reconstruída, nunca deixará de ser Rui. Até porque os seus filhos têm um pai.

Renata é agora servente em restaurações de edifícios. Findo o trabalho, regressa a casa. Lá é homem, em casa, mulher. Quando pica o ponto, veste-se de novo como lhe dita a consciência, maquilha-se, repõe os seus gestos e caminha em direcção à lida da casa. Sílvia está ainda em processo de transformação. «No meu caso, quero apenas moldar-me um pouco mais, no fundo desejo olhar-me ao espelho e sentir-me bem com o que vejo», conta.

Renata recorda um fatídico encontro diário. O encontro com o espelho que lhe mostrava alguém que desprezava. «Eu via-me como um estranho. Só olhava para o espelho quando era obrigada, de manhã, porque evitava até ao limite olhar-me». Agora a sua vida mudou bastante. Usa brincos, anéis, deixou crescer o cabelo e tem um cuidado extremo com o seu visual.

«Nós sofremos», diz Renata. «As guerras que se travam dentro de nós e aquelas que os outros nos obrigam a gerir tornam muitas vezes o nosso dia-a-dia infernal. Mas é assim que somos felizes», afirma, convicta.

Direitos desviados

Apesar das inúmeras lutas enfrentadas pelas mulheres, ainda se constatam comportamentos que, nas mais variadas situações, denotam uma completa desconsideração pela figura feminina. São resquícios de um passado em que a mulher era uma figura meramente decorativa. Mas terá sido sempre assim?

Por: Leonora Gonçalves

Sentada timidamente na cadeira, com as mãos entrelaçadas e pousadas no colo, Maria conta a sua história. «Pensava que era uma questão de tempo e que as coisas iam melhorar, mas não melhoravam nunca», diz, com um sorriso tímido. Pausadamente e com uma voz muito suave, relata uma história angustiante, uma história de desrespeito, uma história de agressão.
Maria é um nome fictício, mas esta denominação pouca importância tem. Afinal, esta não é a apenas a realidade de Maria, mas de tantas outras mulheres que se libertaram dos seus agressores. E ainda de outras: as que sofrem em silêncio.

«Vivi com ele sete anos. Os primeiros tempos foram razoáveis. Depois, quando me apercebi que a situação não era muito boa, tentei ajudá-lo. Foi então que ele ficou pior do que eu imaginava. No momento em que perdeu o emprego, começou a culpar toda a gente e começou a bater-me. Para ele, ficar sem emprego e não poder mandar revoltava-o», relata resignada. «Eu achava que aquilo não estava bem. Ajudava-o tanto, monetariamente… dava-lhe tudo e ele, para mim, não tinha um carinho, não tinha nada», lamenta.

Maria viveu em silêncio, procurou esconder as dores. Nem aos familiares contou que era vítima de violência doméstica. «Por cinco anos, escondi a situação da minha família. Sabia que não gostariam de ouvir o que se passava. As minhas amigas notavam que eu me tinha afastado delas. Ele nem sequer gostava que eu me encontrasse com as minhas amigas. Para não o incomodar, deixei de as ver. Dizia-lhes que gostava de ficar em casa», confessa.

Durante o seu casamento, Maria sofreu humilhações de forma constante. Fingiu não se deixar afectar pelas ofensas verbais, nem pela violência física do marido. Nesse momento, entrou num perigoso processo de negação da realidade, exteriorizando uma falsa impressão de felicidade e interiorizando o sofrimento e a indignação. «Um dia, perguntei-lhe o porquê de me bater, o porquê de tão pouco carinho. Ele respondeu-me: ‘É a sobrevivência’», recorda Maria.

Começar uma nova vida é um verdadeiro desafio para Maria. «Tenho uma amiga que sai muito à noite e que diz que eu tenho de a acompanhar, para aliviar a cabeça. Eu digo-lhe que estou um bocado velha para novas experiências!", conta, rindo das suas palavras. Apesar da solidão que afirma sentir, a perspectiva de um novo relacionamento ainda está distante. «Eu acho que sinto falta de companhia e um certo vazio. Mas, por outro lado, penso: eu também estava sozinha. Afinal, antes só do que mal acompanhada, não é?».

A história de Odete

Com um ar mais inquieto do que o de Maria, e de forma um pouco receosa, Odete conta a sua história. Odete, outro nome fictício, mostra-se bastante nervosa enquanto relata a sua experiência. Afinal, foi há muito pouco tempo que decidiu libertar-se das amarras do marido violento.

Odete conta o que sofreu nos anos em que esteve casada com o agressor. «Acusava-me de ter vários amantes, quando isso era mentira. Se eu saía para visitar um familiar ou uma pessoa qualquer, acusava-me de ir ter com o amante. Se eu comprasse uma roupa nova, era para andar bonita para os outros homens. Eu nem sequer cortava o cabelo...», lembra Odete.

O esforço para esquecer os anos de sofrimento só a fazem avivar ainda mais o pesadelo. Para Odete, é impossível esquecer cada episódio de violência, como o que ocorreu, por exemplo, no dia do seu casamento, assim que ficou sozinha com o marido. Sente raiva e mágoa não só do companheiro, mas de si mesma. «Foram 12 longos anos sem dizer nada a ninguém» afirma, em dor.

Odete não acredita na justiça. Esse é o motivo que aponta para não ter denunciado o marido: «Se eu tivesse a certeza que ele ia preso, denunciava-o. Mas como não tenho, não quero que ele fique com mais raiva de mim. Ele já me ameaçou de morte algumas vezes, depois de eu o ter deixado», diz Odete. «Eu só chorava, não discutia. Não falava nada, porque não queria que ninguém ouvisse. Hoje, não tenho nenhuma testemunha para provar a violência. E ele diz que nunca me bateu, que é tudo mentira», lamenta.

A dura realidade

De acordo com Clara Vieira, membro da Associação Mulheres em Acção, é preciso «realçar os valores femininos e a contribuição específica e insubstituível da mulher na família e na sociedade, em casa ou na profissão, no mundo dos negócios e na participação cívica ou política». Clara salienta, ainda, que um dos objectivos do projecto Mulheres em Acção é, precisamente, «contribuir para a consciencialização das situações de desigualdade existentes e, particularmente, para a resolução dos problemas reais das mulheres».

Segundo a socióloga Cláudia Oliveira, «a violência contra a mulher é reconhecida como uma manifestação da desigualdade histórica da relação de poder entre sexos, da tradicional concepção de subordinação e de inferioridade da mulher face ao homem, em suma, como uma forma de discriminação».

Cátia Rodrigues, psicóloga de formação e técnica da Associação de Apoio à Vítima (APAV), referencia que, de todas as vítimas que recorrem à organização, cerca de 90% são mulheres. Para a psicóloga, as vítimas de violência doméstica têm uma grande relutância em terminar a relação conjugal por variados motivos. «Cada caso é um caso», explica.

Cátia Rodrigues afirma que o medo é uma das principais causas apontadas. «Mas o medo está muitas vezes relacionado com os filhos. As mulheres pensam que, apesar de tudo, é preferível continuarem naquele sufoco para poderem ter uma família, ainda que disfuncional. Contando com isso, alguns maridos têm uma estratégia perversa de fazer com que as mulheres tenham cada vez mais filhos ficando, assim, cada vez mais presas à casa», constata a psicóloga.

Cátia Rodrigues alerta ainda para outro comportamento do agressor: a tentativa de isolamento das mulheres de amigos e familiares. «Elas, muitas vezes, deixam os trabalhos e perdem o contacto com os amigos e a família por um ciúme exagerado do marido e, a partir daí, torna-se muito mais fácil controlar a situação», diz Cátia Rodrigues. A dependência económica é outra das causas apontadas, uma vez que permite uma estratégia de controlo sobre as vítimas.

Segundo a psicóloga, a violência psicológica também é muito grave, apesar de não se falar muito dela: «É muito complicado falarmos das agressões psicológicas. No caso de uma agressão física, há provas, como nos casos de violação. Contudo, as agressões psicológicas, que marcam sempre muito mais do que as físicas, são de difícil comprovação e são perpetradas de forma muitas vezes impune pelos seus agentes», conclui. Juridicamente, as mulheres têm, hoje, os mesmos direitos que os homens. Todavia, e infelizmente, a realidade dos diplomas legais não se transfere automaticamente para o social.

Num lugar do passado...

Há muito tempo atrás, no século XV antes de Cristo, uma mulher egípcia tornava-se a primeira faraó da história do seu país. Seu nome era Hatshepsut e, com determinação, estratégias políticas brilhantes e inerente carisma, conseguiu reinar o Egipto por quase 20 anos. segundo as leis egípcias, uma mulher já tinha o direito de administrar propriedade. No caso de ser casada, o marido tinha direito ao pleno uso do que lhe pertencia mas, em caso de divórcio – a mulher tinha essa possibilidade – a sua propriedade tinha que lhe ser devolvida.

Na verdade, segundo as leis egípcias, uma mulher já tinha o direito de administrar propriedade. No caso de ser casada, o marido tinha direito ao pleno uso do que lhe pertencia mas, em caso de divórcio – a mulher tinha essa possibilidade – a sua propriedade tinha que lhe ser devolvida.

Cabe dizer que o casamento se fazia por amor e que o divórcio se situava no âmbito privado. A justiça não intervinha na maioria dos casos e uma união poderia ser terminada pela simples vontade de uma das partes. Não era considerado tabu que a mulher voltasse a casar. Era, aliás, um procedimento bastante normal, uma vez que era considerado pouco comum que uma pessoa adulta fosse solteira. É também notável que, no Antigo Egipto, a mulher tenha possuído não só o direito de iniciar um processo legal sem representação masculina, assim como tenha sido considerada uma testemunha válida em tribunal.

Quanto à profissão, as mulheres tinham o mesmo estatuto que os homens. Todas as actividades profissionais eram de livre acesso a homens e mulheres. Nos túmulos do Egipto Antigo são representadas mulheres como cantoras, padeiras, médicas, líderes religiosas, parteiras e... esposas.

No entanto, a mulher não era apenas uma figura detentora de direitos legais, mas era também respeitada no âmbito social e na relação matrimonial. Os casais são representados muitas vezes de mãos dadas ou até abraçados, numa clara expressão de igualdade e respeito entre marido e mulher.

É curioso mencionar que a sociedade do Egipto Antigo condenava categoricamente a traição conjugal, incluindo a masculina. Há documentos que tratam de uma pequena revolta popular em Tebas motivada pelo facto de um homem manter uma relação amorosa sem se divorciar. Representações mostram a vizinhança com os braços levantados e com ar de desaprovação, o que indica que a pressão social mantinha os homens fiéis sem a necessidade de legislação.

Integração Africana em Portugal

"Cruz Vermelha" é o nome de um bairro social em Cascais. Na área urbana onde ele está situado, é fácil ficar com a sensação de que todos são ricos.Quem se arriscaria a apostar que 95% dos habitantes são africanos? Uns são de Cabo Verde, outros de Angola ou Moçambique. Mas todos carregam consigo histórias de vida semelhantes.

Por: Amanda Alves

Na escola primária do bairro da Cruz Vermelha fica o centro do quotidiano da vida daqueles jovens imigrantes. Quase todos os alunos são africanos ou filhos de africanos. Cabe, então, à escola e aos professores dar formação às crianças que trazem consigo medos, receios e muita desconfiança. Esse é o fruto das discriminações que estão acostumados a sofrer.

Os professores tentam organizar, com frequência, actividades lúdicas e educativas que permitam às crianças ultrapassar os seus traumas, ensinando-os a valorizar e a ganhar orgulho nas suas origens e raízes. Exaltam-se, assim, de forma saudável e natural, os costumes e tradições africanos, tais como a gastronomia, as danças, a língua, as características naturais dos países de onde vieram, para tentar resgatar o amor à pátria e aos seus hábitos.

Aos poucos, as crianças começam a soltar-se e fica estampado no rosto de cada uma a alegria de poderem expressar livremente o que lhes está no sangue. E é essa alegria, aquele sorriso em cada uma daquelas crianças, o bastante para aqueles professores.

«Temos de tentar estabelecer uma relação saudável entre negros e brancos, entre africanos e portugueses, para que seja possível sanar os problemas de discriminação e de racismo que, por mais absurdo que nos possa parecer, ainda existem em grande número», explica Marisa Alves, uma brasileira de 47 anos, com nacionalidade portuguesa, e professora da escola deste bairro há um ano.

Mas esta situação não acontece só com as crianças. Hélder Borges, um jovem de 25 anos, de origem Cabo Verdiana, nasceu em Portugal e tem um nível socio-económico alto. E relata casos de discriminação social pelo facto de ser negro: «as pessoas não estão preocupadas em saber se somos portugueses ou não, pois julgam-nos pela cor e pela nossa origem. Muitas mentalidades já mudaram, mas ainda existem muitos pensamentos muito retrógrados, dos que não sabem respeitar o próximo. E eu já senti na pele várias situações de racismo e/ou discriminação».
Já o primo de Hélder, chegou à cerca de seis meses da sua terra natal, Cabo Verde.

Hélio tem 23 anos e viveu aí sua infância e juventude: «lá as pessoas são alegres e divertidas. Vivem bem com aquilo que têm, sendo muito ou pouco». Hélio veio para Portugal tirar uma licenciatura e diz não ter sentindo ainda sinais de discriminação. «Já vou a lugares onde não existe tanto racismo e também estou envolvido com um grupo de cabo verdianos. No entanto, já senti algum racismo indirectamente e sei que ele existe ao virar da esquina», conta.

O bairro da Cruz Vermelha, apesar de se situar nos arredores de Cascais, é o oposto do que se poderia esperar. Com casas de média qualidade, equipadas com saneamento e luz, a sua deterioração é equivalente às dificuldades de alfabetização e de cultura dos que lá habitam.

Assim, a tristeza geracional passa quotidianamente pelos olhos, mãos e emoções de Marisa Alves. Esta professora, para além de ter que lutar contra uma cultura onde o papel do homem e da mulher se confundem em estados de força psicológica e violência física, precisa de lutar também contra o desapego da Assistência Social que «diz sempre que estou a exagerar. Mas eu sei – e já avisei – que, um dia, ainda vai acontecer uma desgraça…!»

Marisa exemplifica: «um dia destes encontrei um dos meus alunos fechado dentro do contentor do lixo, posto lá por alguém…! Isto já para não falar das brigas violentíssimas que os casais têm, por exemplo, sobre quem leva e se é preciso realmente levar uma criança com 39º de febre ao hospital! Isto seja em frente de quem for!»

Marisa Alves recorda ainda, casos de violação de menores por familiares: «São casos sem resolução porque, enfim, eu é que exagero…»

Novas razões para a mais velha profissão do mundo

Por: Amanda Alves

Luciana (nome fictício), de 20 anos, veio há cerca de dois anos do Brasil. Vivia no interior do estado de Goiás, onde tinha uma vida bastante humilde. Resolveu vir para Portugal através de um convite de uma amiga que dizia ganhar muito dinheiro. Com a esperança de qualquer emigrante, partiu, rumo ao mais comum dos sonhos. «Nunca me explicaram o que vinha realmente fazer aqui em Portugal. Quando cheguei, a minha amiga disse-me que iria trabalhar num bar de alterne como dançarina. Inocentemente acreditei que fosse só isso», confessa.

Com o passar do tempo, Luciana descobriu que não seria só esse o seu trabalho, mas acabou por aceitar. O dinheiro era muito, o a motivou. «No início foi muito difícil, mas fiquei encantada com o dinheiro e com tudo o que isso poderia vir a trazer-me. Era tudo o que nunca tive. Pensei também na ajuda que poderia dar à minha família», diz Luciana. Mas também com o tempo percebeu que tudo isso era uma ilusão: «O dinheiro que se ganha fácil, vai fácil e acabo por gastá-lo nas maiores futilidades, embora viva muito bem», revela.

Luciana manda dinheiro para o Brasil mas não pensa voltar tão cedo para lá. Anseia por uma legalização prometida pelo local onde trabalha. Mas esta nunca mais chega. «Ficamos sempre à espera do dia ideal para voltarmos para o Brasil, mas esse dia dificilmente chega. Na realidade estamos acomodadas com a situação confortável em que nos encontramos».

Já Déborah, também nome fictício, que se encontra em Portugal há cerca de seis meses, diz já saber para o que vinha: «No Brasil já fazia alguns ‘programas’, para ajudar no orçamento e aceitei logo quando surgiu a oportunidade de vir para Portugal, pois iria ganhar muito mais». No entanto, diz que o tipo de prostituição que se pratica aqui é diferente. Mas vale a pena? «Vale. Os portugueses têm um fetiche pelas brasileiras o que, para nós significa trabalho», conta Déborah.

Deboráh não tem pudores quanto à profissão que exerce e mostra até uma certa satisfação pelo que faz. Considera até a prostituição como algo necessário na sociedade actual. «Nós não fazemos só sexo, mas também o papel de amigas, de conselheiras ou mesmo de simples ouvintes a homens com carências afectivas».

Giovanna, chamemos-lhe assim, tem uma opinião diferente de Déborah. Considera um sacrifício enorme a profissão que tem que exercer. Passou por várias situações traumáticas até chegar a Portugal. Como é habitual, veio também de um Estado muito pobre no interior do Brasil (Mato Grosso), onde vivia da agricultura de subsistência, juntamente com a família. Como vivia relativamente próximo da fronteira do Brasil com a Bolívia, onde o tráfico de mulheres e drogas circula em abundância e quase livremente, ela não conseguiu escapar a essa «máfia».

«Disseram à minha família que eu iria trabalhar de empregada em um bar na Bolívia e que iria ganhar dinheiro suficiente para melhorar a vida de toda a minha família. Por isso todos aceitamos», relata Giovanna. Esta jovem, que tem agora 21 anos, foi então até à Bolívia nas piores condições possíveis. Acabada de chegar ao local onde iria trabalhar (um bordel de beira de estrada), logo lhe explicaram o que tinha que fazer. Quando se apercebeu da situação, viu também que não podia fugir: não conhecia a região, não conhecia ninguém e o dono do bordel tinha os seus documentos.

Seis meses depois, disseram-lhe que ela iria para a Europa trabalhar. «Não sabia se isso seria bom ou mau, mas pior de certeza que não era. Já estava tão sofrida que aceitei. De resto, não tinha outra opção».

Assim, Giovanna chegou a Espanha. «O local de trabalho era bem melhor e as pessoas acabaram me ajudando um pouco. Conheci outras brasileiras e acabei fazendo algumas amizades. Só nesta altura é que consegui falar com minha família que nunca mais tinha ouvido falar de mim», refere. Mais tarde, juntamente com uma amiga, resolveram vir para Portugal.

Há um ano que Giovanna trabalha num bar de alterne em Portugal. «Hoje já me acostumei à situação e nem sequer reclamo mais dela. Ganho bem e o resto, a parte desagradável, tento não pensar nela, para não ir abaixo. Ajudo sempre a minha família, embora eles não saibam o que faço de verdade. Num futuro próximo, pretendo voltar para a minha terra e ter uma vida simples mas pura», espera.

Cada qual com a sua história, cada qual com a sua razão, continuam a existir justificativas para a mais velha profissão do mundo. Mudam-se apenas os conceitos, mas a ideia original permanece. E é difícil mudar.

Um pouco de história...

Desde a antiguidade que se ouve falar em prostituição. Em muitas civilizações, a prostituição era praticada por meninas como uma espécie de ritual de iniciação quando atingiam a puberdade. No Egipto Antigo, na região da Mesopotâmia e na Grécia, as prostitutas, consideradas grandes sacerdotisas, portanto sagradas, recebiam honras de verdadeiras divindades e presentes em troca de favores sexuais.

Mais adiante, na época em que a Grécia e Roma polarizaram o domínio cultural, as prostitutas eram admiradas. Tinham, porém, que pagar pesados impostos ao Estado para a prática da sua profissão. Deveriam também utilizar vestimentas que as identificassem. Caso contrário, eram severamente punidas. Na Grécia, existia um grupo de cortesãs - chamadas de hetairas, ou heteras - que frequentavam as reuniões dos grandes intelectuais da época. Eram muito ricas, belas, cultas e de extremamente refinadas, exerciam grande poder político e eram muito respeitadas.

Com o advento do cristianismo, na Idade Média, houve a tentativa da eliminação da prostituição. Porém, existia o culto do casamento cortês, onde a política e a economia se sobrepunham aos sentimentos e as uniões eram arranjadas somente por interesse, reforçando a prostituição. Em muitas Cortes, o poder das prostitutas era muito grande: muitas tinham conhecimento de questões do Estado, tanto que a prostituição passou a ser regulamentada.

Assim foi evoluindo a prostituição até chegar aos dias de hoje. Actualmente, é uma profissão muito mal aceite para a maioria das pessoas e, na maior parte dos países, é uma prática proibida. Isso não faz com que o número de prostitutas diminua. Antes pelo contrário, pois tem aumentado cada vez mais.

No caso de Portugal, este número tem vindo a crescer cada vez mais com a chegada de prostitutas brasileiras que têm inundado os bordéis e as chamadas "casas de alterne".

Comunidade Muçulmana no Porto: uma forma de vida

Em Portugal, o islamismo e o cristianismo convivem de forma civilizada e pacífica. Acreditam em profetas diferentes mas veneram o Deus Uno.

Por: Maria Helena Oliveira

Existem, em Portugal, cerca de quinze mil muçulmanos, espalhados pelo continente e ilhas. A comunidade muçulmana no Porto, embora pequena, conseguiu adaptar a sua cultura à realidade portuguesa. A maioria desses muçulmanos vem do norte de África. A mesquita, longe da sua arquitectura tradicional, é o seu local de culto e reflexão. O Corão é o seu livro sagrado.


Um rosto uma história

Numa loja de produtos oriundos de Marrocos e da Índia esconde-se Farhad Hossain, 28 anos, natural do Bangladesh. Apesar de estar em Portugal há quatro anos, a comunicação não é tarefa fácil. O português é ainda uma língua difícil de se falar. A dificuldade em pronunciar as palavras é clara.

Aceita falar da sua religião. Pede-nos, no entanto, para nos comunicarmos em inglês. Os seus dias são passados na loja, pois o shopping abre cedo e fecha tarde, exigindo-lhe uma presença diária.

Ao longo da conversa são evidentes as saudades do seu país de origem: «Tenho saudades dos meus pais, e vivemos de forma diferente a celebração do fim do Ramadão», conta. No Porto existem poucos muçulmanos, o que torna as celebrações diferentes. «Apenas rezamos de manhã, na mesquita, e fazemos uma ementa especial para o almoço. No meu país visitamos os amigos, decoramos as casas e à noite vemos televisão …existe uma programação especial para esse dia», explica.

Portugal sempre foi visto como um país acolhedor e hospitaleiro. Contudo, Farhad escolheu-o por outros motivos: as condições climatéricas fazem-no sentir em casa; o facto de ser pacífico dá-lhe tranquilidade. Conta-nos que, quase diariamente, um senhor, com alguma idade, vai até à sua loja para o questionar sobre o islamismo. Também os poucos amigos portugueses tentam compreender a sua religião e saber se é verdade o que se diz. Apesar de tudo, existem «semelhanças entre as duas religiões», confirma.

Farhad admite que existem muitos a deturpar as mensagens d’Al Corão. Na sua opinião, «os muçulmanos que matam, não o fazem por questões religiosas, pois a paz é a essência de todas as religiões». Há uma confusão idêntica com a forma como as mulheres são referidas: «Mohamed dá direitos iguais. Mas há quem não os queira seguir». Para o ano, Farhad planeia regressar ao seu país e casar.

A voz da oração

A pouca informação sobre a comunidade muçulmana no Porto complica-nos a chegada à mesquita. Percorremos algumas lojas. Olham-nos com alguma desconfiança e mostram-se reticentes quanto a localizar o templo. Indicam-nos a pessoa que nos pode dar a informação. Quando chegamos, ficam surpreendidos. Perguntam-nos se somos muçulmanas mas, apesar da desconfiança, conseguimos a informação.

Já na mesquita, ficamos sem perceber se estamos no lugar certo. Não existem quaisquer semelhanças com o templo que imaginávamos. Tocamos à campainha. Somos recebidos com um sorriso mas, mais uma vez, surgem os problemas de comunicação: não falam português nem inglês. Somos conduzidas a uma sala, onde ficamos à espera que alguém venha falar connosco.

Passado algum tempo, aparece o Sheir Amadu Camara, natural do Norte de África. Por entre a conversa, revela-nos que estudou a religião islâmica na Universidade da Mauritânia. A sua vinda para Portugal coincidiu com o fim da sua formação académica. Veio para Lisboa em 1991 e está há dois anos no Porto. Na mesquita dá aulas e faz as orações.

Sobre a comunidade muçulmana portuense, explica que a sua maioria é proveniente do «Norte de África, especialmente Magreb e Marrocos. Existem, também, alguns muçulmanos convertidos», afirma.

Não sabemos como abordar a inevitável questão do terrorismo, por isso questionámo-lo sobre Bin Laden. A sua resposta é clara: "Cada um paga pelo mal que faz. Após o 11 de Setembro ganhámos um novo nome: terroristas. Os ocidentais gostam de generalizar. Não é porque um muçulmano cometeu crimes que todos são iguais". No seu tom de voz fica bem expresso o desagrado pela opinião global sobre a sua religião. E conclui que muitos «deturpam o Corão».

26 janeiro, 2005

Tribos Musicais e Cultura Social

O que os une é a música. Ela é o elemento fundamental da sua existência. Alguns jovens de hoje agrupam-se em tribos modernas que são baseadas num género de música. Esse tipo musical dá-lhes uma identidade e comanda o seu modo de ser e de agir.

Por: Tiago Alves

Noutros tempos, a criação do grupo costumava ser fácil: efectuava-se apenas por critérios geográficos ou de parentesco – os que estavam próximos e eram da mesma ascendência constituíam, naturalmente, um grupo - a que podemos chamar clã ou tribo e que era o único grupo a que o indivíduo pertencia durante toda a sua vida. Hoje, a moderna família ainda se constitui como um grupo de grande importância para os indivíduos, mas tornou-se insuficiente só por si. Existe a necessidade de algo mais, de outro grupo que partilhe os mesmos interesses e personalidades, mas que se destaque da família. Um dos factores comum e diferenciador de todos os grupos é a música.

Jorge Matos estuda design industrial, tem 21 anos e longas ‘rastas’ (tranças) que quase cobrem o verde, amarelo e preto da bandeira da Jamaica, a pátria de Bob Marley e do Reggae, estampada nas costas do seu casaco.

O Reggae entrou na sua vida, a sério, há dois anos: «Jorge sempre foi fascinado pela cultura rasta. Esta cultura traduz-se, muito resumidamente, na luta contra a opressão, a pobreza e a desigualdade social, utilizando métodos pacifistas e tendo a música como a sua principal arma. «Quando era pequeno, aqueles vídeos do Bob Marley tocavam-me qualquer coisa cá dentro. Comecei a comprar uns discos e a mostrar aos meus amigos. Depois, fui descobrindo outras pessoas que já percebiam mais do assunto. Acabámos por nos fazer todos amigos e posso dizer que, hoje, somos um grupo. E um grupo muito unido», assume Jorge Matos.

«Ajuda-me a combater o stress». E Jorge explica: «O Reggae dá-me uma paz de alma que no mundo em que vivemos é cada vez mais necessária. Sempre que o ouço fico alegre e sem tensão. Tem muito a ver comigo já que sou contra todo o tipo de violência. O Reggae tem uma mensagem de paz e de amor».

Este Reggear destaca as noites na praia, onde o grupo canta e convive à volta de uma fogueira, como os momentos que mais aprecia. Os charros de erva são igualmente uma presença assídua nestes encontros, mas o essencial é uma viola, alguns ‘djambe’ (tambor africano), boa disposição e a companhia dos amigos para se sentir feliz.

Mas para outros, a praia é apenas para frequentar de dia. As noites são para ser passadas em bares e discotecas onde a fogueira é substituída pelos focos de luz; a viola e o ‘djambe’ são trocados pelas batidas e sons electrónicos.

Ricardo Peres, um estudante de 19 anos, é um dos que elegem a música electrónica e as pistas de dança como elementos indispensáveis para passar um bom momento com o seu grupo. «Adoro dançar e, por isso, desde que haja dinheiro, vou a todas as festas e ‘raves’ que posso. São locais onde a música electrónica tem a sua expressão máxima, adoro. Lá, anda tudo com um sorriso, as pessoas divertem-se e convivem». Apesar de a maior parte destas músicas não ter letras, Ricardo considera que elas estão carregadas de sentimento e as batidas e melodias que ecoam pelas colunas transmitem mais emoções do que as letras das músicas que ouve na rádio.

Ricardo lembra-se de, com 14 anos, sair esporadicamente à noite com os amigos para ouvir quais eram as músicas do momento e depois as pôr a tocar em pequenas festas de garagem à tarde.

«Eram tempos óptimos, mas hoje, ainda nos divertimos bastante. Vamos a discotecas ver os melhores dj’s a tocar. Destaco o Jesus del Campo e o Jiggy: os melhores e os que mais prazer me dão». Para Ricardo, «a música electrónica é a música do momento e do futuro. Nascemos na era da tecnologia, por isso, faz todo o sentido evoluir para um novo género de música e de sons. Não quero ficar preso na música da geração passada. Guitarras e baterias são muito bonitas, mas pertencem a museus», afirma.

Esta última ideia deixaria, com certeza, Eduardo Teixeira à beira de um ataque de nervos. A sua roupa negra e o cabelo liso bem comprido não deixam muitas dúvidas quanto ao seu gosto musical. Mas se, porventura, elas ainda restassem, o nome da banda, ‘Pantera’, escrito na sua camisola, imediatamente as afastaria. Estamos perante um verdadeiro metálico. O Heavy Metal tem a sua origem no início dos anos 70, com bandas como Black Sabath, Deep Purple e Led Zeppelin. As suas principais características são as guitarras carregadas de distorção e uma bateria potente, rápida e agressiva. Desde então, o Heavy Metal evoluiu bastante. Bandas como Metallica e Korn ultrapassaram a marginalidade e a tornaram-se nomes conhecidos por todos.

Eduardo, engenheiro mecânico de 25 anos, acompanha este movimento há mais de 10 anos: «É uma religião, um modo de vida. Uma vez que começas a ouvir este género de música, não o abandonas. Não me consigo imaginar a ouvir outro género de música. Todos os outros tipos de melodia me soam falsos e comerciais, virados para o lucro». A música metálica é violenta, Eduardo não o nega, mas é assim porque o mundo também o é. «Aqui, não há hipocrisia, não se fala do mundo bonito e das flores. Fala-se das coisas que vemos todos os dias nas notícias e que, se calhar, a maioria das pessoas prefere ignorar».

Os concertos são a finalidade última deste género de música. As músicas metálicas são claramente feitas para serem tocadas ao vivo. Nestes espectáculos, há uma enorme descarga de som, energia e emoções, tanto da parte dos músicos como do público.

Os concertos até podem parecer violentos, mas apenas para quem não sabe o que está a ver. «Há encontrões e contacto físico, mas ninguém está ali para andar à pancada. Raramente alguém se magoa a sério», diz Eduardo, que acrescenta: «Já fui a muitos concertos e a única vez que me senti mesmo aflito e pensei que ia ‘marar’ foi num concerto de Prince, no estádio de Alvalade. Ali as pessoas eram selvagens e brutas. Nos concertos de metal há civismo: se cais, ajudam-te a levantar, não passam por ti como se nada fosse», explica.

Para ele, é isto que torna a comunidade metálica especial: «Mesmo não nos conhecendo, somos todos parte do mesmo grupo e todos nos ajudamos. Quer seja a levantarmo-nos uns aos outros ou a pagar uma cerveja a quem não tem dinheiro. Somos um todo, uma comunidade que procura o mesmo: curtir».

No fundo, todos os grupos procuram o mesmo: a diversão, o convívio e a companhia. A música facilita a escolha do grupo a que se quer pertencer. Não há necessidade de perder tempo a "experimentar" vários grupos para descobrir quais os que partilham os seus interesses e convicções.

Com a música, os jovens já sabem à partida o que esperar de um ou de outro determinado grupo. Seja isso a paz interior, as festas ou o descarregar das tensões.

Capoeira: uma arte de entrar na roda

Por: Inês Braga

Descalços, calças largas, t-shirts, cabelos despenteados, alguns "rastas": eis um possível retrato dos alunos da Capoeira.

Os corpos ondeiam-se em movimentos circulantes, rápidos e ágeis. O som das vozes, do berimbau, do pandeiro, é contagiante. Tal como o sorriso que se alarga no rosto de cada um.

É um dia de roda no ‘Grupo Porto da Barra’, onde todos se reúnem em círculo e no meio dá-se o confronto entre os capoeiristas. A roda é fechada por corpos humanos unidos e, ao mesmo tempo, o centro é aberto, pois os capoeiristas em confronto são constantemente interrompidos por novos desafiadores, que passam da roda para o centro. É aqui que se põem à prova os exercícios da semana; é aqui que se joga, que se sente verdadeiramente a sua arte.

A capoeira é uma luta. Mas vai muito além dela. Como refere Karamuru, contra-mestre do grupo, é também «dança, arte, filosofia de vida, você quando entra para a capoeira é que escolhe o que é que você quer fazer com ela. ...Capoeira, para mim é cada vez menos uma luta, é uma cultura», acrescenta Mário Brandão, instrutor.

Uma cultura que nos é passada pelos brasileiros, que faz com que os vários alunos se apaixonem em brasileiro e entoem: "Capoeira, meu amor"... numa das várias músicas.

Curiosamente, os vários membros da Capoeira tratam-se por nomes diferentes dos de baptismo. Ganham as designações que lhes são atribuídas pela prática, pelas características físicas, temperamentais, tornando-as numa espécie de clã, com uma identidade de grupo particular. Por isso se fala em "Brutus", "Flor", "Iemanjá"... e não em João, Maria, Patrícia.

Na Capoeira, não há nenhum manual. As tradições passam de boca em boca, há mais de cem anos e através da Casa Mãe, em Salvador da Baía, onde se vão buscar os princípios, os guias, a inspiração. É também de ginga em ginga que a Capoeira passa. "Gingar" significa andar na Capoeira, tal como está escrito na Casa Mãe, a letras bem salientes: «Procure sempre gingar», recorda Mário Brandão.

As tradições e a passagem do testemunho são, assim, essenciais para a manutenção da filosofia e ensinamentos de vida da Capoeira.

O ‘Grupo Porto da Barra’ nasceu em Maio de 1994, na Baía, Brasil, e é presidido ainda hoje pelo Mestre Cabeludo, mais uma vez a denominação característica. O Mestre é encarado como um líder respeitado e admirado, um guia espiritual e humano. Foi ele que levou Tiago Rouxinol, um jovem português que viveu no Brasil, a decidir trazer a Capoeira de Porto da Barra para o Porto, em 2000. Hoje, a academia tem a média de 40 alunos, que vêem a Capoeira como um modo de vida.

O contra-mestre de Porto da Barra refere que a integração em Portugal foi fácil: «Primeiro pela língua e, segundo, porque há também uma certa mistura; a alegria, a vibração e a energia positiva é a mesma». Como conta Karamuru, a Capoeira é uma importante alavanca formadora dos muitos jovens que por aí passam e a sua influência é notória: «Havia uma menina que era muito nervosa, muito agitada, que depois que entrou para a Capoeira está muito mais calma, muito mais relaxada». Por isso, Karamuru defende que «a filosofia da capoeira é o contacto com a natureza, fazendo amigos, trabalhando o corpo e a mente».

Ouvindo as músicas da Capoeira, facilmente se percebe a sua história, tal como quando se ouve, por exemplo, o toque de Cavalaria, onde se contam as vicissitudes das lutas humanas. Esta música retrata a difícil independência dos negros, simbolizada na mudança de ritmo da melodia, de forma a destacar o aviso da aproximação da polícia, ou seja, para os capoeiristas dispersarem.
Passados muitos anos e noutros países, essa e outras tantas histórias são convicta e entusiasticamente entoadas pelos muitos jovens que, apesar de longe dessa realidade, a sentem muito viva.

Os novos habitantes das aldeias perdidas da Lousã

Sempre pudemos observar nas sociedades, ao longo dos tempos e em diferentes culturas, diversos tipos de êxodos ou de fugas populacionais. Sempre nos foi comum ouvir falar na História do êxodo rural, em que se saía das aldeias em busca da fantasia e das oportunidades (muitas vezes ilusórias) que o meio urbano tinha para oferecer.

Por: Amanda Alves

Hoje, vemos que muitos vieram para as cidades; que muitos encontraram as melhorias na qualidade de vida que desejavam... Mas que muitos não encontraram nada...

Viver em meios urbanos, reconheça-se, que tem que se lhe diga: aguentar a azáfama diária dos carros, do trânsito, dos horários restritos que são para cumprir sem vacilações, do emprego, do patrão, o stress dos ruídos, da rapidez... Enfim, milhentas coisas que nos fazem chegar a casa cansados, saturados. Talvez seja isso e outras mais recônditas razões que levaram algumas pessoas a se ‘refugiarem’ em pequenas aldeias perdidas numa montanha no centro de Portugal.

Com nomes perdidos no tempo, Catarredor e Vaqueirinho são duas pequenas aldeias de casas de pedra situadas na Serra da Lousã, que estão habitadas por pessoas que decidiram mudar a sua forma de viver. Na primeira, vivem apenas seis pessoas, todas do sexo masculino. Algumas são de origem alemã, mas na sua maioria são portugueses que ali habitam.

É uma aldeia sem crianças, com pouca gente: parece uma aldeia abandonada. Os seus habitantes vestem as roupas que lhes dão ou feitas por eles próprios e vivem da venda de artesanato aos que os visitam. De idades diversas, não querem saber de regras socias, dinheiro ou de estatuto: sustentam-se através de trabalhos esporádicos, apenas o suficiente para sobreviver. Dizem, como é o caso de Nuno Silva, de 20 anos, que vão para ali «à procura da tão desejada liberdade».
No meio do nada, sentem que podem fazer tudo ao seu jeito e ao seu tempo, sem as imposições das regras da sociedade. Nesta aldeia o tempo, o espaço, o modo de vida é de cada um: é uma opção singular criada por eles.

Há 16 anos que Dieter vive em Catarredor. É alemão e já percorreu vários cantos do mundo até chegar aqui, a Portugal. Nem ele encontra verdadeira explicação de como cá chegou: «talvez seguindo o rastro da liberdade...», divaga. Hoje tem 59 anos e pensa viver em Catarredor para o resto da vida, embora lamente que já não possa percorrer outros caminhos.

Desta primeira aldeia vamos até à segunda por um caminho estreito no meio da montanha, que encurtava a distância mas não a dificuldade. Finalmente, depois de muitos atalhos, caminhos sinuosos, chegamos a Vaqueirinho.

À primeira vista deserta, sem vivalma, fomos percorrendo os caminhos estreitos de pedra escorregadia observando os pormenores que nos mostravam que as casas afinal sempre estavam habitadas. Encontramos alguém que nos indica Negrett.

Negrett é alemã e vive em Vaqueirinho desde 1984. É a primeira moradora e, por isso, traz consigo muitas informações sobre esta comunidade. Entre solteiros e famílias, nesta aldeia vivem 16 pessoas. Também foram ali parar por causa da tão ambicionada liberdade. Liberdade de agir, de ser e de fazer, que a sociedade urbana não permite.

Negrett tem um bar, o ‘Fantasia’, que é o seu meio de subsistência. Aí realiza, por vezes, festas Punk, Reagge, Rock e de outros tipos de música. Normalmente, a estas festas vêm pessoas de vários locais. E, assim, chega um público próprio e característico que enche a aldeia de vida quando, de dia, ela parece deserta. Nesses dias, o desejo de quietude que tanto têm estes habitantes desaparece e transforma-se em trabalho árduo. Mas depois, tudo volta ao seu normal e o som das águas do rio volta a ser ouvido.

Vaqueirinho conta com algum apoio por parte da Câmara Municipal da Lousã, que vê a aldeia como um ponto turístico, sobretudo no Verão. Deste modo, em troca de habitação, àgua e luz, acolhem os visitantes com as honras de lugar turístico.

Voltamos para casa, para a cidade, com a sensação de que tudo era muito diferente da nossa realidade mas com a certeza que aqueles que ali vivem são, à sua maneira, felizes.

silêncio humano

Fernanda Rodrigues é uma mãe surda–muda que nunca abdicou da sua vida nem da sua felicidade devido ao obstáculo que a sua deficiência lhe provoca

Por: Pedro Oliveira

Entre gestos e comunicação espaço-visual, e o seu filho João a servir de intérprete, Fernanda relembra as dificuldades da sua infância. «Hoje as pessoas não têm tanta repulsa à deficiência auditiva destas pessoas», refoça.

Os seus olhos azuis e cintilantes expressam o sentido da sua consciência. E Fernanda ainda recorda: «não há nada mais bonito que o nascimento de um filho. O nascimento dos meus colmatou a minha deficiência».

A questão das oposições binárias na educação dos surdos (normalidade/anormalidade, maioria/minoria, oralidade/gestualidade, etc.) aparece, hoje, como um dos factores de risco mais nocivos na análise da realidade educacional relativa aos surdos e cujo enraizamento ideológico parece tão inevitável como insuperável.

Para algumas pessoas os surdos comunicam em silêncio, mas «ser surda é um problema para os outros, para mim não. Nasci assim…e morrerei assim…criei 2 filhos, como qualquer mãe», diz.
O João frequanta o curso de Gestão na Universidade do Minho. Quando lhe perguntámos se teve algum tipo de dificuldade de integração devido à deficiência dos seus pais (porque, nesta família, o pai também é surdo-mudo), ele reponde: «se há coisa de que me orgulho, é dos meus pais. Com eles nunca sinto necessidade de me fazer ouvir, mas, de me fazer ver. E a diferença é que a nossa troca de olhares corresponde ao estado mais cristalino que os seres humanos podem alcançar entre si».

O surdo está privado do sentido que serve como ‘antena’, pois proporciona automaticamente informações referentes às flutuações do ambiente. Essa privação provoca o que se chama de "isolamento", um factor importante para a integração e a estabilidade emocional.
Enquanto nos preparava um café para tomarmos na mesa de sala de jantar, de súbito entra o pai pela porta da frente num espaço contíguo à sala onde nos encontrávamos.

Fernanda sentiu que Carlos tinha chegado a casa. Houve alguma coisa que a fez entrar em sintonia com o marido, uma qualidade química qualquer, dessas que por vezes ouvimos falar. Será que a falta de um dos sentidos poderá compensar os outros até ao ponto de se tornarem pessoas extremamente sensíveis, de um género de ligações químicas entre eles?

Sabe-se que os surdos constituem um desses grupos minoritários que sofrem as restrições dos demais, pelo facto de serem diferentes. Fernanda Rodrigues sabe que não detém todas as faculdades sensitivas pertencentes dos seres humanos, mas se às vezes isso parece um obstáculo, outras até pode ser um benefício. Como assim? Num tom irónico, entremeado com um leve sorriso, expresso pela finura dos seus lábios, responde-me: «discussões sobressaltadas não há. Não digo que não tenhamos as nossas discussões, mas são sempre feitas em silêncio».

Vozes sem som

A comunicação faz parte do quotidiano. No entanto, temos tendência a relacioná-la com a linguagem verbal. Mas nem todos comunicam assim...

Por: Magda Neto

«Há 25 anos, nas salas de aulas, os miúdos estavam com as mãos amarradas atrás das costas. A oralidade era a teoria dominante. Os miúdos tinham que aprender a falar... Hoje as coisas, felizmente, estão muito diferentes» afirma Cristina, uma intérprete de língua gestual, que prefere deixar publicar só o seu primeiro nome.

Do ponto de vista da intérprete, a língua gestual está na moda, é mais conhecida, e as pessoas já não ignoram o assunto. Apesar de já existir um número razoável de programas de televisão com recurso à legendagem e à interpretação em língua gestual, isso não é suficiente para fornecer as informações sobre os acontecimentos do quotidiano. «As crianças percebem o que dizem os presidentes dos outros países, porque está legendado, mas não entendem o Presidente do nosso país», explica Cristina.

Os surdos deparam-se com inúmeros obstáculos no dia-a-dia e a comunicação é a principal barreira a vencer. E queixam-se dos centros de saúde e hospitais, porque não existe aí um único intérprete. «Nos centros de saúde fazem as inscrições e ficam à espera que os chamem, eles não ouvem...», conclui Cristina. Quando têm que se dirigir a locais públicos, os surdos normalmente usam a escrita para estabelecer a comunicação, caso contrário pedem a um intérprete que os acompanhe.

Muitas vezes, o preconceito dá origem a conclusões erradas, como pressupor que os surdos não sabem ler e, até, que são analfabetos.

De acordo com Cristina, algumas pessoas tendem a rotular os surdos de deficientes e como consequência desse preconceito, não lhes surgem oportunidades a nível profissional. E, normalmente, os surdos são considerados bons trabalhadores. Como não comunicam oralmente, concentram-se totalmente no trabalho que fazem.

Para além deste centro, existem também escolas que se empenham na reintegração dos surdos. A Escola E.B. 2,3 de Paranhos tem algumas turmas de alunos ouvintes onde estão inseridas crianças surdas. Numa dessas turmas, o 5ºG, os não ouvintes partilham quatro disciplinas com os outros alunos: Educação Visual e Tecnológica, Formação Cívica, Educação Física e Área de Projecto.

As crianças surdas têm um pavilhão próprio onde são leccionadas as restantes disciplinas. Neste pavilhão encontram-se móveis decorados com símbolos da língua gestual, o que proporciona familiaridade aos alunos. A boa integração destas crianças passa pela aceitação dos colegas e pelo apoio dos professores, intérpretes e funcionários.

Na aula de Matemática, com a directora de turma, Irene Guimarães, as quatro crianças surdas mantêm um clima de boa disposição e comunicação intensa. Numa sala pouco acolhedora, onde existe mais espaço e carteiras do que o necessário para aquela pequena turma, o vazio é preenchido por toda a agitação das crianças.

Nesse espaço está presente também o intérprete, Fernando, filho de pais surdos. Contudo, Fernando não fica para todas as aulas, o que requer um esforço acrescido por parte dos professores. «A minha maior dificuldade, quando o Fernando não está, são os termos técnicos», explica Irene Guimarães.

Na escola, os professores têm formação de língua gestual. No entanto, o tempo de aprendizagem não é suficiente. Apenas sabem o básico. Dos quatro alunos, e estes nomes são fictícios, a Andreia e a Clara são surdas de nascença, enquanto a Bárbara e o Rodrigo são parcialmente surdos. Todos se dão muito bem e aproveitam qualquer distracção por parte da professora para comunicarem entre si.

Enquanto a professora indaga Andreia acerca da matéria, Rodrigo, que se encontra pensativo numa das carteiras ao lado da janela, de início aparentando timidez, vai apreciando e comunicando com as colegas que passam do lado de fora, que interagem de forma entusiasta com ele.

No intervalo, apesar de haver tendência para os alunos não ouvintes se juntarem, existe interacção com os outros colegas, tornando-se visível de ambas as partes a clara aceitação da diferença. Rodrigo, no intervalo, expande-se e convive.

Esses alunos têm bastantes dificuldades a Português, sendo melhores alunos a Inglês. «O inglês tem uma estrutura mais fácil, mais semelhante à língua gestual», justifica Irene Guimarães.
Por trás de uma discussão sobre futebol, de uns raspanetes da professora, uns olhares cruzados e uns sorrisos próprios de crianças traquinas, está uma óptima relação e comunicação entre professora, intérprete e alunos.

Ilha do Sal, gente do mar

Calções velhos e gastos, com um cinto muito apertado para não deixar a roupa cair, pés descalços e um sorriso imenso como o mar que tem por detrás. É Iorundi, um rapaz de 8 anos, que passa pelas praias de Santa Maria para ver as «minina», pedir uns caramelose chapinhar na água do mar porque não sabe nadar… As palavras que sabe dizerem português são poucas, mas a sua expressividade é infinitamente mais reveladoraque o crioulo, a língua que lhes protege a genuidade.

Por: Inês Braga

Iorundi é um exemplo dos rostos cabo-verdianos simpáticos e prestáveis. A tez é escura e os olhos são predominantemente claros, muitos deles esverdeados, fruto de uma bonita miscigenação. Grande parte são mestiços, provenientes da mistura de negro - africanos ocidentais com europeus, sobretudo portugueses.

O menino rapidamente se torna um amigo, um companheiro grato pela atenção e afecto dos turistas da vila de Santa Maria, oferecendo um sorriso grande e genuíno, em troca de t-shirts, rebuçados, ou apenas de um abraço.

O azul-turquesa profundo e transparente das águas, as leves ondas, convidam ao mergulho no mar quente, repleto de seres marinhos, peixes, águas vivas, estrelas, conchas, uma infinidade de beldades dos oceanos. A areia é branca e fina, agradável ao tacto e à vista, que tende a mover-se quando o vento quase invariavelmente forte e presente a arrasta e levanta, fazendo-a quase chicotear o corpo. O vento arrasa assim a ilha do Sal que, aquando da sua descoberta, foi denominada de Llana (plana), devido ao seu relevo singular, mas depois foi substituída pela actual com a descoberta das duas grandes salinas.

A extracção de sal das salinas de Pedra Lume e Santa Maria foi a primeira actividade que justificou a presença humana na ilha. Hoje são vistas, sobretudo, como um local turístico, tal como as piscinas naturais de Buracona, outro destino ao qual nos leva a única estrada da ilha.
Na viagem vê-se um deserto de terra, sem árvores, pessoas ou casas, apenas vento profundo que se ouve mais do que se sente. Tudo é árido no seu interior, mas tudo está envolto pela sumptuosidade do mar. O calor entranha. O ar é seco, absorvente e quente.

Iorundi vive em Espargos, cidade onde habita a maior parte da população do Sal. Sem turistas, sem areia branca, é apenas terra seca, favelas e alguns postos bancários, mercearias e outros locais administrativos de apoio à subsistência da população - exemplos de miséria, contrastante com a opulência da costa de Santa Maria, onde os hotéis de quatro estrelas se estendem pelo areal, paralelos às águas azuis, cristalinas do mar. Iorundi é uma das muitas pessoas para quem os 15 kms que separam Espargos de Santa Maria não constituem obstáculo. A pé ou à boleia, esse caminho faz parte da sua rotina.

O destino apresenta-se em pouco mais de seis ruas ou, antes, caminhos de terra ladeados por alguns passeios, preenchidos por alguns restaurantes que servem de apoio aos hotéis concentrados em três dos 11 quilómetros da costa.

A Vila de Santa Maria também tem um mercado artesanal, em que a arte sedutora e persuasiva dos comerciantes é por demais evidente, ao ponto de Samira, uma rapariga local, dizer que «quem entra no mercado, de lá não sai!».

Santa Maria é a eleição dos turistas, que se juntam aos cerca de 1400 habitantes locais, tornando aquele espaço num dos principais atractivos da ilha. Os passaportes do mundo preenchem assim o deserto do Sal.

A riqueza do mar e a beleza da costa escondem um hiato gritante mas facilmente descoberto, sobretudo em Espargos. Entrando no centro, a pobreza não é tão evidente nas principais ruas, mas à medida que se percorrem alguns caminhos, desdobram-se bairros sem quaisquer condições habitacionais. Logo se encontra uma fonte única que sobressai pelo acumular de gente à espera de água para beber, para lavar, para sentir, na miragem de calor. A água para uso da população é, assim, normalmente obtida em poços, fontes públicas ou camiões cisterna. Aliás, a maioria (90%) das casas cabo-verdianas não possui água canalizada.

Outra agravante reside nas condições climatéricas que não favorecem o desenvolvimento das actividades humanas, antes pelo contrário. A escassa vegetação torna-se um tímido desafio ao domínio absoluto da aridez do clima. Assim, não é de estranhar a estima do cabo-verdiano e do povo do Sal perante a flora e a vegetação em geral.

De volta a Espargos, encontram-se também crianças descalças no ardor do chão, da terra, que dançam ao som da «Morna» entoada por eles e que sorriem como só eles sabem. São crianças alegres, ainda muito pequenas, sem idade suficiente para trabalhar em Santa Maria, para ver a luxúria do turismo, e ainda demasiado pequenas para percorrerem os quilómetros que levam a eventuais caramelos e mergulhos no mar...

O mar revela-se determinante na vida da ilha, trazendo o peixe e atraindo os turistas. As ondas maltratam, mas sobretudo embalam e abraçam a população do Sal. É o mar que transforma Santa Maria no local turístico da ínsua, e consequentemente o local de trabalho, a fonte de sobrevivência da população. Também é ele que atrai o surf, o wind-surf, levando praticantes e admiradores à célebre extremidade da costa, a Ponta Preta, palco de tantos campeonatos que exaltam o nome da ilha.

O Sal identifica-se pelas suas salinas naturais, uma das principais atracções após a extinção do vulcão. Mas é o mar que confere identidade e alma à gente do Sal. É de lá que vem o peixe, o sorriso de Iorundi e dos muitos miúdos que se divertem a saltar do paredão do porto e a brincar na areia e nas ondas.

Esta é uma praia única, objecto dos viajantes e consequentes investimentos, que traz jovens para trabalhar nos hotéis ou para passear o seu charme na praia, galanteando turistas e mostrando grandes exibições em pranchas de skimmy oferecidas pelos que por lá passam.

O mar de Cabo Verde inspira os poetas, as mornas e os batuques que tanto soam no ar e que os liberta da miséria, elevando-os a um estado de espírito surpreendente.

De facto, como a senhora Querina, dona de uma loja de artesanato no centro de Santa Maria, refere, «aqui não é como na Europa, onde tudo tem direitos e apoios. A gente aqui não tem salário e não tem cidade grande, mas tem o mar e tem gente boa!».

Com efeito, o horizonte a esbrasear no mar revela os traços e a gente que fazem o Sal sorrir. Depois desta viagem, facilmente se depreende a inspiração de Cesária Évora: quem parte de nha terra Cabo Verde sente Sôdade.

Tribos Indígenas no Paraná

Por: Amanda Alves

No estado brasileiro do Paraná, as origens étnicas são idênticas às dos outros estados: portugueses, luso-brasileiros, mamelucos, negros e índios sendo, estes últimos, um factor racial e cultural muito importante na formação do estado.

Hoje, encontramos no estado 9015 índios, divididos em 14 tribos, que ocupam cerca de 84 mil hectares do Estado do Paraná, nas chamadas reservas indígenas.

Estas reservas indígenas são zonas espalhadas pelo Estado, sem valor algum, onde os índios foram colocados pelo governo. Mas que condições têm? Serão elas adequadas à cultura indígena? São apenas ‘terras de ninguém’, que nada produzem, muitas vezes nas beiras das estradas e que, por tudo mais, parecem depósito de uma raça que é nada mais que a verdadeira origem do Brasil.

Na estrada principal que percorre o Paraná até à Foz do Iguaçu, encontra-se uma destas reservas. Está devidamente sinalizada com placas, como se de um ponto turístico se tratasse.
Começamos, a ver algumas barracas decadentes e alguns índios na beira da estrada. Querem vender chocalhos e arcos e flechas de fabrico artesanal. O preço é aquilo que quiserem dar.

Amontoam-se nos carros que param, com um aspecto que já pouco tem daquilo que se imagina quando se pensa na figura de um índio. Restos de roupas dos brancos são agora as suas vestimentas, os barracos decadentes são agora as suas casas e o comércio o seu novo meio de subsistência.

A terra não está a ser cultivada. Aquela imagem de um povo primitivo, nobre e elevado, logo se desfaz perante o mau cheiro e o aspecto doentio que apresentam. Ali deixam de ser índios, mas também não são brancos. Deixaram a sua cultura, mas não adquiriram outra. Estão num intermédio que não está a meio de nada.

Quando parámos o carro, para também contribuir para aquele triste comércio, oferecemos um chocolate que levávamos. O bebé índio nunca tinha visto tal coisa e decidiu começar a comer o chocolate com a embalagem, porque não sabia distinguir uma coisa da outra. Não era por ser bebé, pois todos os outros também não tinham compreendido.

Decidimos ir até à casa de apoio à reserva indígena onde, supostamente, deveria estar alguém que zelasse pelo bem-estar e pela integração das tribos nestas zonas, mas estava vazia. Assim, segue-se o caminho com a sensação de que, de uma forma ou de outra, sempre e cada vez mais, contribuímos para maltratar as nossas origens e a nossa natureza.

Tribos Indígenas no Paraná

Por: Amanda Alves

No estado brasileiro do Paraná, as origens étnicas são idênticas às dos outros estados: portugueses, luso-brasileiros, mamelucos, negros e índios sendo, estes últimos, um factor racial e cultural muito importante na formação do estado.

Hoje, encontramos no estado 9015 índios, divididos em 14 tribos, que ocupam cerca de 84 mil hectares do Estado do Paraná, nas chamadas reservas indígenas.

Estas reservas indígenas são zonas espalhadas pelo Estado, sem valor algum, onde os índios foram colocados pelo governo. Mas que condições têm? Serão elas adequadas à cultura indígena? São apenas ‘terras de ninguém’, que nada produzem, muitas vezes nas beiras das estradas e que, por tudo mais, parecem depósito de uma raça que é nada mais que a verdadeira origem do Brasil.

Na estrada principal que percorre o Paraná até à Foz do Iguaçu, encontra-se uma destas reservas. Está devidamente sinalizada com placas, como se de um ponto turístico se tratasse.
Começamos, a ver algumas barracas decadentes e alguns índios na beira da estrada. Querem vender chocalhos e arcos e flechas de fabrico artesanal. O preço é aquilo que quiserem dar.

Amontoam-se nos carros que param, com um aspecto que já pouco tem daquilo que se imagina quando se pensa na figura de um índio. Restos de roupas dos brancos são agora as suas vestimentas, os barracos decadentes são agora as suas casas e o comércio o seu novo meio de subsistência.

A terra não está a ser cultivada. Aquela imagem de um povo primitivo, nobre e elevado, logo se desfaz perante o mau cheiro e o aspecto doentio que apresentam. Ali deixam de ser índios, mas também não são brancos. Deixaram a sua cultura, mas não adquiriram outra. Estão num intermédio que não está a meio de nada.

Quando parámos o carro, para também contribuir para aquele triste comércio, oferecemos um chocolate que levávamos. O bebé índio nunca tinha visto tal coisa e decidiu começar a comer o chocolate com a embalagem, porque não sabia distinguir uma coisa da outra. Não era por ser bebé, pois todos os outros também não tinham compreendido.

Decidimos ir até à casa de apoio à reserva indígena onde, supostamente, deveria estar alguém que zelasse pelo bem-estar e pela integração das tribos nestas zonas, mas estava vazia. Assim, segue-se o caminho com a sensação de que, de uma forma ou de outra, sempre e cada vez mais, contribuímos para maltratar as nossas origens e a nossa natureza.

Guimarães: o lugar que viu nascer Portugal

A cidade do 1º Rei de Portugal, D. Afonso Henriques, foi considerada Património Mundial pela UNESCO. Que tipo de metrópole se ergueu no decorrer dos tempos? Guimarães alargou a sua esfera existencialista no seio das cidade modelo, referencial para outras que devam ter como presente a conservação dos seus monumentos, da sua história, da sua alma.

Por: Pedro Oliveira

Guimarães é uma cidade mítica, lendária, que das profundezas da sua alma viu nascer Portugal. Guimarães, paralelamente à azáfama dos estudantes e trabalhadores que a envolvem todos os dias, detém em si uma circunstância histórica para lá da zona delimitada da muralha. Qualquer casa, rua, praça ou monumento é um espaço de estudo próprio, um vasto campo para um olhar em variadas perspectivas.

A paisagem urbanística faz-nos recuar no tempo. A praça da Senhora da Oliveira é o local por excelência daqueles que gostam de passar o fim de tarde numa esplanada e, ao mesmo tempo, contemplar a igreja de fachada gótica com o mesmo nome. Nas imediações dessa igreja poderá observar-se o Padrão da Vitória, constituído para ser um lugar de devoção. Daqui chegava e partia tudo de importante na vila: o mercado, as notícias, o sagrado e o profano.

Este era um espaço de sociabilidade que o tempo não fez esquecer. Nas ruas e vielas que circundam a praça encontram-se as casas, quase sempre, de rés-do-chão e dois pisos, que conferem à cidade todo o esplendor histórico que a caracteriza.

O castelo é um dos monumentos com maior carga simbólica que tornam esta cidade o berço da nação. Mandado construir no séc. XII por Mumadona Dias, detinha como função proteger a população de eventuais ataques dos invasores. Terá sido neste castelo que D. Afonso Henriques resistiu, em 1127, ao cerco imposto por Afonso VII de Leão e Castela. Situado na colina do castelo e ocupando uma posição sobranceira ao burgo medieval amuralhado da cidade encontra-se o 2º monumento de maior importância na panorâmica arquitectónica de Guimarães: o Paço dos Duques de Bragança. Este importante paço feudal foi mandado construir no séc. XV, na tentativa de afirmar uma imagem de construção que se aliava à monumentalidade que o conforto da época exigia.

Guimarães candidatou-se a Património Mundial, título que é atribuído pela UNESCO. Para se compreender o que levou a que o seu nome fosse considerado uma cidade Património Mundial, Francisca Abreu, vereadora do pelouro da Cultura deste município, referiu «que o facto de Portugal ser a nação mais antiga da Europa à qual Guimarães está directamente associada, por si só, eram critérios relevantes», acrescentando que o facto do «património não ter sido destruído ou delapidado ao longo dos tempos é uma condição, à priori para ter estruturas arquitectónicas que pudessem ser sujeitas a critérios de avaliação».

Houve todo um processo, com pré-avaliações por parte da UNESCO, para se fazerem acertos na reabilitação. De realçar, nesta regeneração, que o processo de labuta que se adoptou foi feito em consonância com a população.

O gabinete técnico local envolveu sempre as populações, um trabalho porta-a-porta que considerou a voz e a razão dos habitantes. Segundo a responsável pelo pelouro da Cultura o processo de reabilitação passou por três fases: intervenção nas praças públicas e edifícios públicos; reabilitação comercial e reabilitação das casas privadas. «Foi adoptado um método pedagógico de contacto com as pessoas com uma equipa técnica em contacto com os visados na explicitação de alterações consideradas pertinentes», refere a responsável.

Guimarães é um símbolo da identidade nacional e os vimaranenses foram participantes activos na construção de uma história passada, mas paradoxalmente virada para o futuro.

Inicialmente, esta vila foi um centro de aperfeiçoamento de técnicas de edificação para construção, como comprovam alguns edifícios em cidades ultramarinas. «No Brasil, em São Salvador da Baía-Pelourinho ou nas Canárias detemos a traça de algumas técnicas de construção que se fazem notar em Guimarães. Transportamos além fronteiras a nossa vivência de estar, de viver e de fazer» sublinha Francisca Abreu.

A cidade mudou desde que lhe foi atribuído o título de Património Mundial.

Para Francisca Abreu, a responsabilidade aumentou: «agora tenta-se manter a qualidade do centro histórico e alargar a intervenção além muros, noutras periferias, acrescentando, assim, outros planos operativos, tais como, por exemplo, um cibercentro construído para a população». «Foi feito um levantamento exaustivo de todos os sítios: monumentos, fontes, quintas, paisagens de interesse patrimonial», acrescenta.

Guimarães é uma metrópole que se inscreve na alma lusitana. É uma sede de município carregada de simbolismo, na qual a sua gente tem um sentimento de orgulho e pertença à fundação deste território chamado Portugal. Uma terra com uma História que é de todos os portugueses mas, agora, do mundo também.

Gil Eannes: Segredos da história de um barco parado

«Isto era o Deus que aparecia aos pescadores, porque era aqui que iam as encomendas que as mulheres enviavam para os homens que andavam na pesca à linha».

Por: Madalena Nevado

Com um sorriso nos lábios e um olhar que transmite alegria e saudade, Pedro Lima Ribeiro, de 71 anos de idade, está sentado numa das salas do Navio-Museu Gil Eannes e recorda os oito meses que lá passou, exercendo a profissão de electricista.

Pedro Ribeiro entrou pela primeira vez no Gil Eannes em 1958. Acabado de chegar no navio Angola para passar a Páscoa com a família e a namorada na sua terra natal, Viana do Castelo, recebeu um convite de um amigo. Segundo Maquinista, com quem tinha trabalhado no paquete Serpa Pinto.

O Gil Eannes era o suporte de toda esta frota nos seus mais variados aspectos, desempenhando, simultaneamente, funções de ‘embaixador’ - representante dos portugueses e de Portugal em diversas regiões do globo e em locais tão distantes como a Gronelândia e a África do Sul.
Durante esta viagem, Pedro Ribeiro viveu experiências que o fizeram ter muito orgulho em ser português.

Se o atracar de um navio de pesca no porto de St. John’s era caso para deixar os residentes cautelosos, o mesmo não se verificava em relação ao Gil Eannes. Este gozava de um prestígio enorme nos portos da Terra Nova, em especial no porto de St. John’s na Gronelândia: «Usufruía de um estatuto único. Era-lhe permitido sair e regressar a este cais sem tratar de qualquer documentação, bastando um simples telefonema para o capitão do porto e para a Alfândega», recorda o antigo electricista.

Para além dos pescadores, viajaram com Pedro Ribeiro algumas pessoas ilustres. Foi o caso de Bernardo Santareno: «Ele chamava-se Martinho, que era o seu pseudónimo. Era um dos três médicos que aqui trabalhavam», lembra. Foi a relação com estes médicos que lhe permitiu ter um contacto mais directo com a medicina. Recorda, com uma certa vaidade, que assistiu a várias operações: «Assisti a 72. Eu era o assistente oficial. Cabia-me preparar a sala que, naquela altura, tinha que estar quente», recorda.

Enquanto navio hospital, o Gil Eanes recebia vários pedidos de socorro de outros navios, não só para situações de resgate como também para assistirem doentes com prognósticos variados. Desde homens com «tromboses, que chegavam como mortos, a feridos graves que tinham que ser assistidos de imediato», recorda Pedro Lima Ribeiro. Com muita mágoa, visível pelas lágrimas nos olhos e pela voz que teima em não sair, lembra a morte de um companheiro de viagem que, «apesar de todos os esforços por parte da equipa médica, não sobreviveu».

Havia, no entanto, situações em que a sua nacionalidade o deixava um pouco desconfortável.

Em St. John’s, quando os nossos pescadores chegavam, davam um alerta geral a avisar os habitantes que havia portugueses em terra, para se prevenirem contra os roubos. Na época, os nossos pescadores, quando em terra, roubavam tudo o que lhes aparecia pela frente: roupas que estivessem a secar, triciclos das crianças, comida, tudo o que podiam", lembra. Isto acontecia com os navios dos pescadores que andavam na pesca à linha: «No Gil Eannes vivia-se em ambiente de autêntico luxo, em relação aos outros navios de pesca. Esses viviam na miséria», diz Pedro Ribeiro.

O convite apanhou-o de surpresa, porém, respondeu de imediato: «Eu faço a viagem no Gil Eannes, desde que possa passar a Páscoa em Viana do Castelo. E assim foi: recebi o telegrama a perguntar se aceitava embarque e eu aceitei».

Apesar de já conhecer o Navio e a sua importância, quer para os homens que pescavam nos mares da Terra Nova e Gronelândia, quer para Portugal, foi nesta viagem que Pedro Lima Ribeiro se certificou da sua grandeza: as suas actividades humanitárias, sociais e, mesmo, políticas.

A assistência multifacetada que o navio exercia a favor de todos aqueles que tinham necessidade de recorrer aos seus serviços de apoio valeu-lhe, por parte de toda uma frota de mais de 70 navios, a designação de "Anjo da Guarda". Essa assistência era prestada a navios e tripulações de uma forma gratuita, independentemente da nacionalidade.

A história do Gil Eannes

A história do Gil Eannes começa no ano de 1916. Aquando da I Grande Guerra, um cargueiro alemão é retido num porto nacional. O Lahneck, assim se chamava o cargueiro a vapor, foi rebaptizado com o nome de Gil Eannes e foi este que fez a primeira assistência aos navios de pesca nos mares da Terra Nova no ano de 1927. Esta situação manteve-se até ao ano de 1942.
No dia 19 de Março de 1955 foi posto a flutuar nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo o Gil Eannes dos nossos dias.

Um Navio Hospital dotado de meios médicos, de assistência, enfermarias, sala de tratamento, gabinete de radiologia, bloco operatório, capela e até salas de lazer que prestava uma assistência médica compatível com a dignidade humana dos pescadores do bacalhau. Tinha capacidade para 72 tripulantes, 6 passageiros, 74 doentes e dispunha de câmaras frigoríficas.

Durante vinte anos desempenha as funções de rebocador, salva-vidas, quebra-gelo e abastece os navios de pesca. O Gil Eannes envelhece e deixa de ser útil. Atracado no Cais da Rocha é mais tarde vendido para abate à empresa Baptista & Irmãos, Lda.

Posteriormente, o Gil Eannes é adquirido pela Comissão Pró Gil Eannes, devolvido à sua terra natal, recuperado e encontra-se neste momento na antiga doca comercial de Viana do Castelo, como Navio-Museu e onde funciona uma Pousada da Juventude flutuante. Hoje o Gil Eannes é o ex-libris da Cidade de Viana do Castelo.

Rio das Pedras

Ao Brasil também temos por hábito associar as favelas. É habitual relacionarmos os morros do Rio de Janeiro com esses bairrosque descem as encostas...

Por: Amanda Alves

As favelas surgiram na cidade maravilhosa, nas muitas encostas dos terrenos acidentados que caracterizam a cidade do Rio de Janeiro: como a construção de casas nesses locais é difícil, os terrenos baixam para um preço insignificante. Daí que as favelas se encontrem nos morros.
O que também caracteriza esses aglomerados habitacionais é o enorme tráfico de armas e drogas e a consequente violência. O Rio de Janeiro é uma das cidades mais violentas do Mundo devido a existir, dentro dela, um excesso de favelas com os maiores cabecilhas do tráfico de drogas. Por exemplo, em comparação, o número de favelas em São Paulo com indícios de violência é drasticamente menor.

No entanto, no meio de tudo isso existe uma favela que, em vez do morro, fica situada no bairro mais promissor e rico da cidade: a Barra. E, para além de fugir a essa "regra", existe uma característica muito mais atípica: nessa favela não existe nenhum tipo de tráfico, nem de violência. Esse sítio chama-se Rio das Pedras.

Numa visita, a primeira reacção comum é o medo. O medo de entrar numa favela, num "sub mundo" social de que tanto se ouve falar mas que poucos têm a coragem de encarar. Depois de muitos se terem negado a acompanhar a reportagem da PESSOAS, conseguimos um ‘guia’. Mário Antunes, filantrópico por natureza, presta solidariedade. Mário trabalha num centro espírita e já há 6 anos auxilia aquela comunidade a vários níveis: com oferta de cestas básicas, com medicamentos e material escolar. Auxilia no que pode. Mas, principalmente, ele doa compreensão, amor, respeito e carinho àqueles seres humanos. Com Mário Antunes, pudemos compreender a história daquelas gentes e daquele local.

Mais de 95% das pessoas que vivem em Rio das Pedras não são do Rio de Janeiro. Vieram de estados brasileiros pobres e longínquos à procura de melhor qualidade de vida. Uniram-se naquele local por estar ao lado de um rio que, na altura, era limpo e cheio de peixes e, como o terreno é pantanoso, o preço da terra era insignificante. No entanto, quem lá vai pode verificar que os chamados "favelados" não são o que se pensa: são pessoas de muito carácter e dignidade, que lutam por uma sobrevivência dura.

Tonha, uma mulher de 26 anos e com 6 filhos, vive numa das muitas barracas da favela. Nessa barraca onde todos vivem, na realidade só cabem, no máximo, duas pessoas. Não tem casa de banho, não tem cama (apenas um estrado de madeira onde todos dormem), o chão tem uma inclinação bastante acentuada, pois a terra pantanosa daquela zona vai-se desmoronando com o tempo. Também chove lá dentro. Talvez estas características já sejam mais que suficientes para descrever o que é morar ali. Apesar disso, Tonha recebeu-nos com muito carinho. De tez muito morena, de cabelo desgrenhado, de olhos castanho fosco e com um sorriso muito desdentado, Tonha constrói uma expressão que lhe soma mais 20 anos aos que tem, numa força repetidamente cansada mas inesgotável, bem visível no cuidado que tem com as poucas roupas, o mais bem cuidadas possível, que os seus filhos trazem vestidas.

«O Estado nada faz por nós, excepto em época de eleições. Aí vêm oferecer algumas cestas básicas e prometer mundos e fundos que nunca cumprem», conta Tonha. Salienta também, que o acesso aos bens essenciais é muito complicado. Para se chegar a uma farmácia é necessário, primeiro, percorrer vários caminhos enlameados que, à noite, pouca luz têm e, depois, esperar para apanhar mais dois transportes. Sem mencionar as escolas e hospitais inexistentes... "Para três dos meus filhos entrarem na escola, tive que dormir durante duas semanas seguidas na frente do portão para arrumar vaga e, mesmo assim, não consegui para todos", referiu, ainda, Tonha.

Antes de morar ali, esta mulher nasceu e viveu na Rocinha, a favela mais marcada pela violência e pelo tráfico de toda a América do Sul. A sua mãe ainda vive lá.

Depois de constituir família, Tonha mudou-se para Rio das Pedras. Não aguentava viver, a cada dia, rodeada pelo medo e pela insegurança. «Havia tiroteios a toda a hora, traficantes que entravam armados na nossa própria casa para se esconderem, policiais revistando tudo. Era horrível. Aqui, em Rio das Pedras, não. Não temos condições como lá, mas vivemos em paz, sem confusão e sem medo. Todo mundo se dá bem e se ajuda», diz Tonha.

Ao sairmos desta barraca, onde as crianças, no meio de máquinas fotográficas e gravadores, só se interessaram por um pobre caderno que trazia nas mãos - queriam escrever e não tinham onde - fomos para casa de uma criança muito conhecida na favela. O Maciel é um menino de 12 anos. Também mora no Rio das Pedras e já tem a seu cargo grandes responsabilidades. Foi ele próprio que as quis. Com uma bicicleta que lhe ofereceram percorre, diariamente, toda a favela à procura de pessoas que possam estar a precisar de auxílio. «Sei que as pessoas precisam de ajuda e, por isso, não consigo ficar parado vendo-as sofrer. No que puder, ajudo sempre, ou então peço apoio», conta.

Maciel andou de hospital em hospital, pelo Rio de Janeiro, até encontrar uma vaga para uma senhora que vivia numa rua da favela e que precisava de uma cirurgia à bexiga, com muita urgência. Graças a isso, essa mulher está viva.

Apesar de, com a sua mãe e irmã, ter ido parar a Rio das Pedras, fugidos de casa devido à violência doméstica perpetrada pelo pai, Maciel revela com uma sinceridade emocionante: «Sei que o meu pai é assim, mas eu já o perdoei e hoje sou muito feliz. Sei que levo uma vida miserável, sem condições, mas sou feliz». O menino diz que gosta de viver no Rio das Pedras: «todos são amigos e tentam fazer o bem ao próximo».

Maciel nunca faltou às aulas na vida e é o melhor aluno da escola. É um princípio para realizar o seu maior sonho: ser advogado. «Se conhecer as leis, posso ajudar ainda mais pessoas», diz.
Visitámos ainda Fernanda, uma menina da mesma idade do Maciel e que tenta seguir as suas pegadas. A sua casa é uma das melhores da favela e, por isso, sempre que podem, ajudam os outros, apesar de as suas histórias de vida serem igualmente duras.

Para desvendarmos o porquê desta favela ser tão pacífica, descobrimos que existe a chamada "polícia mineira" - um grupo de homens vindos do Estado de Minas Gerais e que defende os interesses do lugar. Andam pelas ruas com uma ‘peixeira’ - uma faca muito grande, assim designada por eles, e que sabem utilizar com mestria - para manterem a ordem e assegurarem a tranquilidade dos moradores. Quem fugir às regras, pode arriscar a vida.