26 janeiro, 2005

Rio das Pedras

Ao Brasil também temos por hábito associar as favelas. É habitual relacionarmos os morros do Rio de Janeiro com esses bairrosque descem as encostas...

Por: Amanda Alves

As favelas surgiram na cidade maravilhosa, nas muitas encostas dos terrenos acidentados que caracterizam a cidade do Rio de Janeiro: como a construção de casas nesses locais é difícil, os terrenos baixam para um preço insignificante. Daí que as favelas se encontrem nos morros.
O que também caracteriza esses aglomerados habitacionais é o enorme tráfico de armas e drogas e a consequente violência. O Rio de Janeiro é uma das cidades mais violentas do Mundo devido a existir, dentro dela, um excesso de favelas com os maiores cabecilhas do tráfico de drogas. Por exemplo, em comparação, o número de favelas em São Paulo com indícios de violência é drasticamente menor.

No entanto, no meio de tudo isso existe uma favela que, em vez do morro, fica situada no bairro mais promissor e rico da cidade: a Barra. E, para além de fugir a essa "regra", existe uma característica muito mais atípica: nessa favela não existe nenhum tipo de tráfico, nem de violência. Esse sítio chama-se Rio das Pedras.

Numa visita, a primeira reacção comum é o medo. O medo de entrar numa favela, num "sub mundo" social de que tanto se ouve falar mas que poucos têm a coragem de encarar. Depois de muitos se terem negado a acompanhar a reportagem da PESSOAS, conseguimos um ‘guia’. Mário Antunes, filantrópico por natureza, presta solidariedade. Mário trabalha num centro espírita e já há 6 anos auxilia aquela comunidade a vários níveis: com oferta de cestas básicas, com medicamentos e material escolar. Auxilia no que pode. Mas, principalmente, ele doa compreensão, amor, respeito e carinho àqueles seres humanos. Com Mário Antunes, pudemos compreender a história daquelas gentes e daquele local.

Mais de 95% das pessoas que vivem em Rio das Pedras não são do Rio de Janeiro. Vieram de estados brasileiros pobres e longínquos à procura de melhor qualidade de vida. Uniram-se naquele local por estar ao lado de um rio que, na altura, era limpo e cheio de peixes e, como o terreno é pantanoso, o preço da terra era insignificante. No entanto, quem lá vai pode verificar que os chamados "favelados" não são o que se pensa: são pessoas de muito carácter e dignidade, que lutam por uma sobrevivência dura.

Tonha, uma mulher de 26 anos e com 6 filhos, vive numa das muitas barracas da favela. Nessa barraca onde todos vivem, na realidade só cabem, no máximo, duas pessoas. Não tem casa de banho, não tem cama (apenas um estrado de madeira onde todos dormem), o chão tem uma inclinação bastante acentuada, pois a terra pantanosa daquela zona vai-se desmoronando com o tempo. Também chove lá dentro. Talvez estas características já sejam mais que suficientes para descrever o que é morar ali. Apesar disso, Tonha recebeu-nos com muito carinho. De tez muito morena, de cabelo desgrenhado, de olhos castanho fosco e com um sorriso muito desdentado, Tonha constrói uma expressão que lhe soma mais 20 anos aos que tem, numa força repetidamente cansada mas inesgotável, bem visível no cuidado que tem com as poucas roupas, o mais bem cuidadas possível, que os seus filhos trazem vestidas.

«O Estado nada faz por nós, excepto em época de eleições. Aí vêm oferecer algumas cestas básicas e prometer mundos e fundos que nunca cumprem», conta Tonha. Salienta também, que o acesso aos bens essenciais é muito complicado. Para se chegar a uma farmácia é necessário, primeiro, percorrer vários caminhos enlameados que, à noite, pouca luz têm e, depois, esperar para apanhar mais dois transportes. Sem mencionar as escolas e hospitais inexistentes... "Para três dos meus filhos entrarem na escola, tive que dormir durante duas semanas seguidas na frente do portão para arrumar vaga e, mesmo assim, não consegui para todos", referiu, ainda, Tonha.

Antes de morar ali, esta mulher nasceu e viveu na Rocinha, a favela mais marcada pela violência e pelo tráfico de toda a América do Sul. A sua mãe ainda vive lá.

Depois de constituir família, Tonha mudou-se para Rio das Pedras. Não aguentava viver, a cada dia, rodeada pelo medo e pela insegurança. «Havia tiroteios a toda a hora, traficantes que entravam armados na nossa própria casa para se esconderem, policiais revistando tudo. Era horrível. Aqui, em Rio das Pedras, não. Não temos condições como lá, mas vivemos em paz, sem confusão e sem medo. Todo mundo se dá bem e se ajuda», diz Tonha.

Ao sairmos desta barraca, onde as crianças, no meio de máquinas fotográficas e gravadores, só se interessaram por um pobre caderno que trazia nas mãos - queriam escrever e não tinham onde - fomos para casa de uma criança muito conhecida na favela. O Maciel é um menino de 12 anos. Também mora no Rio das Pedras e já tem a seu cargo grandes responsabilidades. Foi ele próprio que as quis. Com uma bicicleta que lhe ofereceram percorre, diariamente, toda a favela à procura de pessoas que possam estar a precisar de auxílio. «Sei que as pessoas precisam de ajuda e, por isso, não consigo ficar parado vendo-as sofrer. No que puder, ajudo sempre, ou então peço apoio», conta.

Maciel andou de hospital em hospital, pelo Rio de Janeiro, até encontrar uma vaga para uma senhora que vivia numa rua da favela e que precisava de uma cirurgia à bexiga, com muita urgência. Graças a isso, essa mulher está viva.

Apesar de, com a sua mãe e irmã, ter ido parar a Rio das Pedras, fugidos de casa devido à violência doméstica perpetrada pelo pai, Maciel revela com uma sinceridade emocionante: «Sei que o meu pai é assim, mas eu já o perdoei e hoje sou muito feliz. Sei que levo uma vida miserável, sem condições, mas sou feliz». O menino diz que gosta de viver no Rio das Pedras: «todos são amigos e tentam fazer o bem ao próximo».

Maciel nunca faltou às aulas na vida e é o melhor aluno da escola. É um princípio para realizar o seu maior sonho: ser advogado. «Se conhecer as leis, posso ajudar ainda mais pessoas», diz.
Visitámos ainda Fernanda, uma menina da mesma idade do Maciel e que tenta seguir as suas pegadas. A sua casa é uma das melhores da favela e, por isso, sempre que podem, ajudam os outros, apesar de as suas histórias de vida serem igualmente duras.

Para desvendarmos o porquê desta favela ser tão pacífica, descobrimos que existe a chamada "polícia mineira" - um grupo de homens vindos do Estado de Minas Gerais e que defende os interesses do lugar. Andam pelas ruas com uma ‘peixeira’ - uma faca muito grande, assim designada por eles, e que sabem utilizar com mestria - para manterem a ordem e assegurarem a tranquilidade dos moradores. Quem fugir às regras, pode arriscar a vida.

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