26 janeiro, 2005

Ilha do Sal, gente do mar

Calções velhos e gastos, com um cinto muito apertado para não deixar a roupa cair, pés descalços e um sorriso imenso como o mar que tem por detrás. É Iorundi, um rapaz de 8 anos, que passa pelas praias de Santa Maria para ver as «minina», pedir uns caramelose chapinhar na água do mar porque não sabe nadar… As palavras que sabe dizerem português são poucas, mas a sua expressividade é infinitamente mais reveladoraque o crioulo, a língua que lhes protege a genuidade.

Por: Inês Braga

Iorundi é um exemplo dos rostos cabo-verdianos simpáticos e prestáveis. A tez é escura e os olhos são predominantemente claros, muitos deles esverdeados, fruto de uma bonita miscigenação. Grande parte são mestiços, provenientes da mistura de negro - africanos ocidentais com europeus, sobretudo portugueses.

O menino rapidamente se torna um amigo, um companheiro grato pela atenção e afecto dos turistas da vila de Santa Maria, oferecendo um sorriso grande e genuíno, em troca de t-shirts, rebuçados, ou apenas de um abraço.

O azul-turquesa profundo e transparente das águas, as leves ondas, convidam ao mergulho no mar quente, repleto de seres marinhos, peixes, águas vivas, estrelas, conchas, uma infinidade de beldades dos oceanos. A areia é branca e fina, agradável ao tacto e à vista, que tende a mover-se quando o vento quase invariavelmente forte e presente a arrasta e levanta, fazendo-a quase chicotear o corpo. O vento arrasa assim a ilha do Sal que, aquando da sua descoberta, foi denominada de Llana (plana), devido ao seu relevo singular, mas depois foi substituída pela actual com a descoberta das duas grandes salinas.

A extracção de sal das salinas de Pedra Lume e Santa Maria foi a primeira actividade que justificou a presença humana na ilha. Hoje são vistas, sobretudo, como um local turístico, tal como as piscinas naturais de Buracona, outro destino ao qual nos leva a única estrada da ilha.
Na viagem vê-se um deserto de terra, sem árvores, pessoas ou casas, apenas vento profundo que se ouve mais do que se sente. Tudo é árido no seu interior, mas tudo está envolto pela sumptuosidade do mar. O calor entranha. O ar é seco, absorvente e quente.

Iorundi vive em Espargos, cidade onde habita a maior parte da população do Sal. Sem turistas, sem areia branca, é apenas terra seca, favelas e alguns postos bancários, mercearias e outros locais administrativos de apoio à subsistência da população - exemplos de miséria, contrastante com a opulência da costa de Santa Maria, onde os hotéis de quatro estrelas se estendem pelo areal, paralelos às águas azuis, cristalinas do mar. Iorundi é uma das muitas pessoas para quem os 15 kms que separam Espargos de Santa Maria não constituem obstáculo. A pé ou à boleia, esse caminho faz parte da sua rotina.

O destino apresenta-se em pouco mais de seis ruas ou, antes, caminhos de terra ladeados por alguns passeios, preenchidos por alguns restaurantes que servem de apoio aos hotéis concentrados em três dos 11 quilómetros da costa.

A Vila de Santa Maria também tem um mercado artesanal, em que a arte sedutora e persuasiva dos comerciantes é por demais evidente, ao ponto de Samira, uma rapariga local, dizer que «quem entra no mercado, de lá não sai!».

Santa Maria é a eleição dos turistas, que se juntam aos cerca de 1400 habitantes locais, tornando aquele espaço num dos principais atractivos da ilha. Os passaportes do mundo preenchem assim o deserto do Sal.

A riqueza do mar e a beleza da costa escondem um hiato gritante mas facilmente descoberto, sobretudo em Espargos. Entrando no centro, a pobreza não é tão evidente nas principais ruas, mas à medida que se percorrem alguns caminhos, desdobram-se bairros sem quaisquer condições habitacionais. Logo se encontra uma fonte única que sobressai pelo acumular de gente à espera de água para beber, para lavar, para sentir, na miragem de calor. A água para uso da população é, assim, normalmente obtida em poços, fontes públicas ou camiões cisterna. Aliás, a maioria (90%) das casas cabo-verdianas não possui água canalizada.

Outra agravante reside nas condições climatéricas que não favorecem o desenvolvimento das actividades humanas, antes pelo contrário. A escassa vegetação torna-se um tímido desafio ao domínio absoluto da aridez do clima. Assim, não é de estranhar a estima do cabo-verdiano e do povo do Sal perante a flora e a vegetação em geral.

De volta a Espargos, encontram-se também crianças descalças no ardor do chão, da terra, que dançam ao som da «Morna» entoada por eles e que sorriem como só eles sabem. São crianças alegres, ainda muito pequenas, sem idade suficiente para trabalhar em Santa Maria, para ver a luxúria do turismo, e ainda demasiado pequenas para percorrerem os quilómetros que levam a eventuais caramelos e mergulhos no mar...

O mar revela-se determinante na vida da ilha, trazendo o peixe e atraindo os turistas. As ondas maltratam, mas sobretudo embalam e abraçam a população do Sal. É o mar que transforma Santa Maria no local turístico da ínsua, e consequentemente o local de trabalho, a fonte de sobrevivência da população. Também é ele que atrai o surf, o wind-surf, levando praticantes e admiradores à célebre extremidade da costa, a Ponta Preta, palco de tantos campeonatos que exaltam o nome da ilha.

O Sal identifica-se pelas suas salinas naturais, uma das principais atracções após a extinção do vulcão. Mas é o mar que confere identidade e alma à gente do Sal. É de lá que vem o peixe, o sorriso de Iorundi e dos muitos miúdos que se divertem a saltar do paredão do porto e a brincar na areia e nas ondas.

Esta é uma praia única, objecto dos viajantes e consequentes investimentos, que traz jovens para trabalhar nos hotéis ou para passear o seu charme na praia, galanteando turistas e mostrando grandes exibições em pranchas de skimmy oferecidas pelos que por lá passam.

O mar de Cabo Verde inspira os poetas, as mornas e os batuques que tanto soam no ar e que os liberta da miséria, elevando-os a um estado de espírito surpreendente.

De facto, como a senhora Querina, dona de uma loja de artesanato no centro de Santa Maria, refere, «aqui não é como na Europa, onde tudo tem direitos e apoios. A gente aqui não tem salário e não tem cidade grande, mas tem o mar e tem gente boa!».

Com efeito, o horizonte a esbrasear no mar revela os traços e a gente que fazem o Sal sorrir. Depois desta viagem, facilmente se depreende a inspiração de Cesária Évora: quem parte de nha terra Cabo Verde sente Sôdade.

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