28 janeiro, 2005

Mente Certa em Corpo Errado

«Sou uma mulher que nasceu num corpo estranho» Assim se resume a história de Sílvia, de 35 anos, Ricardo de nascimento.

Por: Cláudia Ferreira da Silva

Sílvia ainda se parece um pouco com um homem, mas é quase uma mulher. «Ser mulher é algo de natural em mim. Trata-se de uma maneira de olhar o mundo. Nós, mulheres, temos um universo próprio. Não tenho uma vagina, mas é exactamente como se tivesse», conta Sílvia, transexual feminino.

De todas as variantes da sexualidade humana, nenhuma é tão incompreendida como a transexualidade, a bizarra experiência de nascer com cromossomas, genitais e hormonas de um sexo, mas ter a convicção íntima de pertencer ao género oposto. Enquanto homossexuais, lésbicas e travestis assumem os órgãos genitais que têm, os transexuais repudiam o que a natureza lhes legou.

Segundo a psicóloga Vera Fonseca, é fundamental destacar a dor e o sofrimento de sentir-se preso a um corpo e viver uma situação social não condizente com o seu estado emocional. «O transexual apresenta um distúrbio de identidade de género, constante e persistente, que evolui na busca da mudança permanente de seu sexo». Mas, muitas vezes, existem condicionantes que perturbam este sonho…

A transexualidade é independente da orientação sexual do sujeito, podendo este ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Sílvia fala como uma mulher, tem tiques próprios das mulheres, como um cuidado especial com o corpo, senta-se e gesticula como só as mulheres sabem.

A voz de Sílvia ainda é grave e masculina, mas desfaz-se nos encantos de tons suaves, educados, cultos. E como se sente com os seus órgãos genitais? Responde sem rodeios: «Não sinto os meus genitais. É como se não os tivesse». Na rua, as pessoas olham e perguntam: é homem ou mulher? Isto na melhor das hipóteses, diz Sílvia, porque, na pior, aparece a injúria, o insulto, a agressão. "Bichas, travestis, maricas", ouve regularmente.

Renata, quarenta anos e de porte esbelto e esguio, vai mais longe. Conta que durante os 20 anos em que se prostituiu, os homens bissexuais eram a maioria dos seus clientes. Procuravam, na sua maioria, sexo oral. Mas havia outros, muito sós, diz, que a procuravam pelo desejo secreto de fazer sexo com um pénis e receber carícias de uma mulher.

«Em minha casa, apesar de todos saberem esta minha opção, a não concordância do meu pai transforma este assunto em tabu», conta Renata, triste. «Eu nunca fui um homem, não sei o que é que um homem sente», diz Sílvia. E sem equívocos, sem hesitar, acrescenta: «Eu sempre fui uma mulher e vivo como qualquer mulher». E era com uma mulher que se parecia, efectivamente.

Sexo. «Quando faço amor, o meu companheiro ignora os meus órgãos. É fácil. Eu sou uma mulher, porto-me na relação em função do feminino e sinto-me assim», conta Sílvia. «Só comecei a ter orgasmos quando assumi a mulher que eu sou, isto é, quando deixei transparecer a minha verdadeira sensibilidade», confessa.

Das duas personagens desta história, apenas Renata se quer submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. O seu nome consta da lista de espera do corredor da esperança dos hospitais portugueses. Renata espera obstinadamente. «Eu tenho um sonho», diz. «Quero ser mulher a todos os níveis», completa.

Renata já foi Rui. No Bilhete de Identidade, assina este nome ao lado de uma fotografia onde a maquilhagem afirma sem despudor que é mulher e os longos cabelos ajudam à aparência feminina. Mostra o BI como consolação, mas sabe que, mesmo sendo operada, isto é, adquirindo plenamente a cidadania da transexual feminina, transformado que foi o pénis numa vagina reconstruída, nunca deixará de ser Rui. Até porque os seus filhos têm um pai.

Renata é agora servente em restaurações de edifícios. Findo o trabalho, regressa a casa. Lá é homem, em casa, mulher. Quando pica o ponto, veste-se de novo como lhe dita a consciência, maquilha-se, repõe os seus gestos e caminha em direcção à lida da casa. Sílvia está ainda em processo de transformação. «No meu caso, quero apenas moldar-me um pouco mais, no fundo desejo olhar-me ao espelho e sentir-me bem com o que vejo», conta.

Renata recorda um fatídico encontro diário. O encontro com o espelho que lhe mostrava alguém que desprezava. «Eu via-me como um estranho. Só olhava para o espelho quando era obrigada, de manhã, porque evitava até ao limite olhar-me». Agora a sua vida mudou bastante. Usa brincos, anéis, deixou crescer o cabelo e tem um cuidado extremo com o seu visual.

«Nós sofremos», diz Renata. «As guerras que se travam dentro de nós e aquelas que os outros nos obrigam a gerir tornam muitas vezes o nosso dia-a-dia infernal. Mas é assim que somos felizes», afirma, convicta.

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