26 janeiro, 2005

Vozes sem som

A comunicação faz parte do quotidiano. No entanto, temos tendência a relacioná-la com a linguagem verbal. Mas nem todos comunicam assim...

Por: Magda Neto

«Há 25 anos, nas salas de aulas, os miúdos estavam com as mãos amarradas atrás das costas. A oralidade era a teoria dominante. Os miúdos tinham que aprender a falar... Hoje as coisas, felizmente, estão muito diferentes» afirma Cristina, uma intérprete de língua gestual, que prefere deixar publicar só o seu primeiro nome.

Do ponto de vista da intérprete, a língua gestual está na moda, é mais conhecida, e as pessoas já não ignoram o assunto. Apesar de já existir um número razoável de programas de televisão com recurso à legendagem e à interpretação em língua gestual, isso não é suficiente para fornecer as informações sobre os acontecimentos do quotidiano. «As crianças percebem o que dizem os presidentes dos outros países, porque está legendado, mas não entendem o Presidente do nosso país», explica Cristina.

Os surdos deparam-se com inúmeros obstáculos no dia-a-dia e a comunicação é a principal barreira a vencer. E queixam-se dos centros de saúde e hospitais, porque não existe aí um único intérprete. «Nos centros de saúde fazem as inscrições e ficam à espera que os chamem, eles não ouvem...», conclui Cristina. Quando têm que se dirigir a locais públicos, os surdos normalmente usam a escrita para estabelecer a comunicação, caso contrário pedem a um intérprete que os acompanhe.

Muitas vezes, o preconceito dá origem a conclusões erradas, como pressupor que os surdos não sabem ler e, até, que são analfabetos.

De acordo com Cristina, algumas pessoas tendem a rotular os surdos de deficientes e como consequência desse preconceito, não lhes surgem oportunidades a nível profissional. E, normalmente, os surdos são considerados bons trabalhadores. Como não comunicam oralmente, concentram-se totalmente no trabalho que fazem.

Para além deste centro, existem também escolas que se empenham na reintegração dos surdos. A Escola E.B. 2,3 de Paranhos tem algumas turmas de alunos ouvintes onde estão inseridas crianças surdas. Numa dessas turmas, o 5ºG, os não ouvintes partilham quatro disciplinas com os outros alunos: Educação Visual e Tecnológica, Formação Cívica, Educação Física e Área de Projecto.

As crianças surdas têm um pavilhão próprio onde são leccionadas as restantes disciplinas. Neste pavilhão encontram-se móveis decorados com símbolos da língua gestual, o que proporciona familiaridade aos alunos. A boa integração destas crianças passa pela aceitação dos colegas e pelo apoio dos professores, intérpretes e funcionários.

Na aula de Matemática, com a directora de turma, Irene Guimarães, as quatro crianças surdas mantêm um clima de boa disposição e comunicação intensa. Numa sala pouco acolhedora, onde existe mais espaço e carteiras do que o necessário para aquela pequena turma, o vazio é preenchido por toda a agitação das crianças.

Nesse espaço está presente também o intérprete, Fernando, filho de pais surdos. Contudo, Fernando não fica para todas as aulas, o que requer um esforço acrescido por parte dos professores. «A minha maior dificuldade, quando o Fernando não está, são os termos técnicos», explica Irene Guimarães.

Na escola, os professores têm formação de língua gestual. No entanto, o tempo de aprendizagem não é suficiente. Apenas sabem o básico. Dos quatro alunos, e estes nomes são fictícios, a Andreia e a Clara são surdas de nascença, enquanto a Bárbara e o Rodrigo são parcialmente surdos. Todos se dão muito bem e aproveitam qualquer distracção por parte da professora para comunicarem entre si.

Enquanto a professora indaga Andreia acerca da matéria, Rodrigo, que se encontra pensativo numa das carteiras ao lado da janela, de início aparentando timidez, vai apreciando e comunicando com as colegas que passam do lado de fora, que interagem de forma entusiasta com ele.

No intervalo, apesar de haver tendência para os alunos não ouvintes se juntarem, existe interacção com os outros colegas, tornando-se visível de ambas as partes a clara aceitação da diferença. Rodrigo, no intervalo, expande-se e convive.

Esses alunos têm bastantes dificuldades a Português, sendo melhores alunos a Inglês. «O inglês tem uma estrutura mais fácil, mais semelhante à língua gestual», justifica Irene Guimarães.
Por trás de uma discussão sobre futebol, de uns raspanetes da professora, uns olhares cruzados e uns sorrisos próprios de crianças traquinas, está uma óptima relação e comunicação entre professora, intérprete e alunos.

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