28 janeiro, 2005

Direitos desviados

Apesar das inúmeras lutas enfrentadas pelas mulheres, ainda se constatam comportamentos que, nas mais variadas situações, denotam uma completa desconsideração pela figura feminina. São resquícios de um passado em que a mulher era uma figura meramente decorativa. Mas terá sido sempre assim?

Por: Leonora Gonçalves

Sentada timidamente na cadeira, com as mãos entrelaçadas e pousadas no colo, Maria conta a sua história. «Pensava que era uma questão de tempo e que as coisas iam melhorar, mas não melhoravam nunca», diz, com um sorriso tímido. Pausadamente e com uma voz muito suave, relata uma história angustiante, uma história de desrespeito, uma história de agressão.
Maria é um nome fictício, mas esta denominação pouca importância tem. Afinal, esta não é a apenas a realidade de Maria, mas de tantas outras mulheres que se libertaram dos seus agressores. E ainda de outras: as que sofrem em silêncio.

«Vivi com ele sete anos. Os primeiros tempos foram razoáveis. Depois, quando me apercebi que a situação não era muito boa, tentei ajudá-lo. Foi então que ele ficou pior do que eu imaginava. No momento em que perdeu o emprego, começou a culpar toda a gente e começou a bater-me. Para ele, ficar sem emprego e não poder mandar revoltava-o», relata resignada. «Eu achava que aquilo não estava bem. Ajudava-o tanto, monetariamente… dava-lhe tudo e ele, para mim, não tinha um carinho, não tinha nada», lamenta.

Maria viveu em silêncio, procurou esconder as dores. Nem aos familiares contou que era vítima de violência doméstica. «Por cinco anos, escondi a situação da minha família. Sabia que não gostariam de ouvir o que se passava. As minhas amigas notavam que eu me tinha afastado delas. Ele nem sequer gostava que eu me encontrasse com as minhas amigas. Para não o incomodar, deixei de as ver. Dizia-lhes que gostava de ficar em casa», confessa.

Durante o seu casamento, Maria sofreu humilhações de forma constante. Fingiu não se deixar afectar pelas ofensas verbais, nem pela violência física do marido. Nesse momento, entrou num perigoso processo de negação da realidade, exteriorizando uma falsa impressão de felicidade e interiorizando o sofrimento e a indignação. «Um dia, perguntei-lhe o porquê de me bater, o porquê de tão pouco carinho. Ele respondeu-me: ‘É a sobrevivência’», recorda Maria.

Começar uma nova vida é um verdadeiro desafio para Maria. «Tenho uma amiga que sai muito à noite e que diz que eu tenho de a acompanhar, para aliviar a cabeça. Eu digo-lhe que estou um bocado velha para novas experiências!", conta, rindo das suas palavras. Apesar da solidão que afirma sentir, a perspectiva de um novo relacionamento ainda está distante. «Eu acho que sinto falta de companhia e um certo vazio. Mas, por outro lado, penso: eu também estava sozinha. Afinal, antes só do que mal acompanhada, não é?».

A história de Odete

Com um ar mais inquieto do que o de Maria, e de forma um pouco receosa, Odete conta a sua história. Odete, outro nome fictício, mostra-se bastante nervosa enquanto relata a sua experiência. Afinal, foi há muito pouco tempo que decidiu libertar-se das amarras do marido violento.

Odete conta o que sofreu nos anos em que esteve casada com o agressor. «Acusava-me de ter vários amantes, quando isso era mentira. Se eu saía para visitar um familiar ou uma pessoa qualquer, acusava-me de ir ter com o amante. Se eu comprasse uma roupa nova, era para andar bonita para os outros homens. Eu nem sequer cortava o cabelo...», lembra Odete.

O esforço para esquecer os anos de sofrimento só a fazem avivar ainda mais o pesadelo. Para Odete, é impossível esquecer cada episódio de violência, como o que ocorreu, por exemplo, no dia do seu casamento, assim que ficou sozinha com o marido. Sente raiva e mágoa não só do companheiro, mas de si mesma. «Foram 12 longos anos sem dizer nada a ninguém» afirma, em dor.

Odete não acredita na justiça. Esse é o motivo que aponta para não ter denunciado o marido: «Se eu tivesse a certeza que ele ia preso, denunciava-o. Mas como não tenho, não quero que ele fique com mais raiva de mim. Ele já me ameaçou de morte algumas vezes, depois de eu o ter deixado», diz Odete. «Eu só chorava, não discutia. Não falava nada, porque não queria que ninguém ouvisse. Hoje, não tenho nenhuma testemunha para provar a violência. E ele diz que nunca me bateu, que é tudo mentira», lamenta.

A dura realidade

De acordo com Clara Vieira, membro da Associação Mulheres em Acção, é preciso «realçar os valores femininos e a contribuição específica e insubstituível da mulher na família e na sociedade, em casa ou na profissão, no mundo dos negócios e na participação cívica ou política». Clara salienta, ainda, que um dos objectivos do projecto Mulheres em Acção é, precisamente, «contribuir para a consciencialização das situações de desigualdade existentes e, particularmente, para a resolução dos problemas reais das mulheres».

Segundo a socióloga Cláudia Oliveira, «a violência contra a mulher é reconhecida como uma manifestação da desigualdade histórica da relação de poder entre sexos, da tradicional concepção de subordinação e de inferioridade da mulher face ao homem, em suma, como uma forma de discriminação».

Cátia Rodrigues, psicóloga de formação e técnica da Associação de Apoio à Vítima (APAV), referencia que, de todas as vítimas que recorrem à organização, cerca de 90% são mulheres. Para a psicóloga, as vítimas de violência doméstica têm uma grande relutância em terminar a relação conjugal por variados motivos. «Cada caso é um caso», explica.

Cátia Rodrigues afirma que o medo é uma das principais causas apontadas. «Mas o medo está muitas vezes relacionado com os filhos. As mulheres pensam que, apesar de tudo, é preferível continuarem naquele sufoco para poderem ter uma família, ainda que disfuncional. Contando com isso, alguns maridos têm uma estratégia perversa de fazer com que as mulheres tenham cada vez mais filhos ficando, assim, cada vez mais presas à casa», constata a psicóloga.

Cátia Rodrigues alerta ainda para outro comportamento do agressor: a tentativa de isolamento das mulheres de amigos e familiares. «Elas, muitas vezes, deixam os trabalhos e perdem o contacto com os amigos e a família por um ciúme exagerado do marido e, a partir daí, torna-se muito mais fácil controlar a situação», diz Cátia Rodrigues. A dependência económica é outra das causas apontadas, uma vez que permite uma estratégia de controlo sobre as vítimas.

Segundo a psicóloga, a violência psicológica também é muito grave, apesar de não se falar muito dela: «É muito complicado falarmos das agressões psicológicas. No caso de uma agressão física, há provas, como nos casos de violação. Contudo, as agressões psicológicas, que marcam sempre muito mais do que as físicas, são de difícil comprovação e são perpetradas de forma muitas vezes impune pelos seus agentes», conclui. Juridicamente, as mulheres têm, hoje, os mesmos direitos que os homens. Todavia, e infelizmente, a realidade dos diplomas legais não se transfere automaticamente para o social.

Num lugar do passado...

Há muito tempo atrás, no século XV antes de Cristo, uma mulher egípcia tornava-se a primeira faraó da história do seu país. Seu nome era Hatshepsut e, com determinação, estratégias políticas brilhantes e inerente carisma, conseguiu reinar o Egipto por quase 20 anos. segundo as leis egípcias, uma mulher já tinha o direito de administrar propriedade. No caso de ser casada, o marido tinha direito ao pleno uso do que lhe pertencia mas, em caso de divórcio – a mulher tinha essa possibilidade – a sua propriedade tinha que lhe ser devolvida.

Na verdade, segundo as leis egípcias, uma mulher já tinha o direito de administrar propriedade. No caso de ser casada, o marido tinha direito ao pleno uso do que lhe pertencia mas, em caso de divórcio – a mulher tinha essa possibilidade – a sua propriedade tinha que lhe ser devolvida.

Cabe dizer que o casamento se fazia por amor e que o divórcio se situava no âmbito privado. A justiça não intervinha na maioria dos casos e uma união poderia ser terminada pela simples vontade de uma das partes. Não era considerado tabu que a mulher voltasse a casar. Era, aliás, um procedimento bastante normal, uma vez que era considerado pouco comum que uma pessoa adulta fosse solteira. É também notável que, no Antigo Egipto, a mulher tenha possuído não só o direito de iniciar um processo legal sem representação masculina, assim como tenha sido considerada uma testemunha válida em tribunal.

Quanto à profissão, as mulheres tinham o mesmo estatuto que os homens. Todas as actividades profissionais eram de livre acesso a homens e mulheres. Nos túmulos do Egipto Antigo são representadas mulheres como cantoras, padeiras, médicas, líderes religiosas, parteiras e... esposas.

No entanto, a mulher não era apenas uma figura detentora de direitos legais, mas era também respeitada no âmbito social e na relação matrimonial. Os casais são representados muitas vezes de mãos dadas ou até abraçados, numa clara expressão de igualdade e respeito entre marido e mulher.

É curioso mencionar que a sociedade do Egipto Antigo condenava categoricamente a traição conjugal, incluindo a masculina. Há documentos que tratam de uma pequena revolta popular em Tebas motivada pelo facto de um homem manter uma relação amorosa sem se divorciar. Representações mostram a vizinhança com os braços levantados e com ar de desaprovação, o que indica que a pressão social mantinha os homens fiéis sem a necessidade de legislação.

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