26 janeiro, 2005

Gil Eannes: Segredos da história de um barco parado

«Isto era o Deus que aparecia aos pescadores, porque era aqui que iam as encomendas que as mulheres enviavam para os homens que andavam na pesca à linha».

Por: Madalena Nevado

Com um sorriso nos lábios e um olhar que transmite alegria e saudade, Pedro Lima Ribeiro, de 71 anos de idade, está sentado numa das salas do Navio-Museu Gil Eannes e recorda os oito meses que lá passou, exercendo a profissão de electricista.

Pedro Ribeiro entrou pela primeira vez no Gil Eannes em 1958. Acabado de chegar no navio Angola para passar a Páscoa com a família e a namorada na sua terra natal, Viana do Castelo, recebeu um convite de um amigo. Segundo Maquinista, com quem tinha trabalhado no paquete Serpa Pinto.

O Gil Eannes era o suporte de toda esta frota nos seus mais variados aspectos, desempenhando, simultaneamente, funções de ‘embaixador’ - representante dos portugueses e de Portugal em diversas regiões do globo e em locais tão distantes como a Gronelândia e a África do Sul.
Durante esta viagem, Pedro Ribeiro viveu experiências que o fizeram ter muito orgulho em ser português.

Se o atracar de um navio de pesca no porto de St. John’s era caso para deixar os residentes cautelosos, o mesmo não se verificava em relação ao Gil Eannes. Este gozava de um prestígio enorme nos portos da Terra Nova, em especial no porto de St. John’s na Gronelândia: «Usufruía de um estatuto único. Era-lhe permitido sair e regressar a este cais sem tratar de qualquer documentação, bastando um simples telefonema para o capitão do porto e para a Alfândega», recorda o antigo electricista.

Para além dos pescadores, viajaram com Pedro Ribeiro algumas pessoas ilustres. Foi o caso de Bernardo Santareno: «Ele chamava-se Martinho, que era o seu pseudónimo. Era um dos três médicos que aqui trabalhavam», lembra. Foi a relação com estes médicos que lhe permitiu ter um contacto mais directo com a medicina. Recorda, com uma certa vaidade, que assistiu a várias operações: «Assisti a 72. Eu era o assistente oficial. Cabia-me preparar a sala que, naquela altura, tinha que estar quente», recorda.

Enquanto navio hospital, o Gil Eanes recebia vários pedidos de socorro de outros navios, não só para situações de resgate como também para assistirem doentes com prognósticos variados. Desde homens com «tromboses, que chegavam como mortos, a feridos graves que tinham que ser assistidos de imediato», recorda Pedro Lima Ribeiro. Com muita mágoa, visível pelas lágrimas nos olhos e pela voz que teima em não sair, lembra a morte de um companheiro de viagem que, «apesar de todos os esforços por parte da equipa médica, não sobreviveu».

Havia, no entanto, situações em que a sua nacionalidade o deixava um pouco desconfortável.

Em St. John’s, quando os nossos pescadores chegavam, davam um alerta geral a avisar os habitantes que havia portugueses em terra, para se prevenirem contra os roubos. Na época, os nossos pescadores, quando em terra, roubavam tudo o que lhes aparecia pela frente: roupas que estivessem a secar, triciclos das crianças, comida, tudo o que podiam", lembra. Isto acontecia com os navios dos pescadores que andavam na pesca à linha: «No Gil Eannes vivia-se em ambiente de autêntico luxo, em relação aos outros navios de pesca. Esses viviam na miséria», diz Pedro Ribeiro.

O convite apanhou-o de surpresa, porém, respondeu de imediato: «Eu faço a viagem no Gil Eannes, desde que possa passar a Páscoa em Viana do Castelo. E assim foi: recebi o telegrama a perguntar se aceitava embarque e eu aceitei».

Apesar de já conhecer o Navio e a sua importância, quer para os homens que pescavam nos mares da Terra Nova e Gronelândia, quer para Portugal, foi nesta viagem que Pedro Lima Ribeiro se certificou da sua grandeza: as suas actividades humanitárias, sociais e, mesmo, políticas.

A assistência multifacetada que o navio exercia a favor de todos aqueles que tinham necessidade de recorrer aos seus serviços de apoio valeu-lhe, por parte de toda uma frota de mais de 70 navios, a designação de "Anjo da Guarda". Essa assistência era prestada a navios e tripulações de uma forma gratuita, independentemente da nacionalidade.

A história do Gil Eannes

A história do Gil Eannes começa no ano de 1916. Aquando da I Grande Guerra, um cargueiro alemão é retido num porto nacional. O Lahneck, assim se chamava o cargueiro a vapor, foi rebaptizado com o nome de Gil Eannes e foi este que fez a primeira assistência aos navios de pesca nos mares da Terra Nova no ano de 1927. Esta situação manteve-se até ao ano de 1942.
No dia 19 de Março de 1955 foi posto a flutuar nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo o Gil Eannes dos nossos dias.

Um Navio Hospital dotado de meios médicos, de assistência, enfermarias, sala de tratamento, gabinete de radiologia, bloco operatório, capela e até salas de lazer que prestava uma assistência médica compatível com a dignidade humana dos pescadores do bacalhau. Tinha capacidade para 72 tripulantes, 6 passageiros, 74 doentes e dispunha de câmaras frigoríficas.

Durante vinte anos desempenha as funções de rebocador, salva-vidas, quebra-gelo e abastece os navios de pesca. O Gil Eannes envelhece e deixa de ser útil. Atracado no Cais da Rocha é mais tarde vendido para abate à empresa Baptista & Irmãos, Lda.

Posteriormente, o Gil Eannes é adquirido pela Comissão Pró Gil Eannes, devolvido à sua terra natal, recuperado e encontra-se neste momento na antiga doca comercial de Viana do Castelo, como Navio-Museu e onde funciona uma Pousada da Juventude flutuante. Hoje o Gil Eannes é o ex-libris da Cidade de Viana do Castelo.

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