26 janeiro, 2005

O berço dos rabelos

Desde o século XVIII que o rio Douro é povoado por barcos originais, os ‘Rabelos’, que foram especialmente concebidos para este rio e para o transporte das pipas de vinho. Na altura, antes da construção das várias barragens, o Douro era agitado e irregular e estas embarcações moldavam-se de perícia para a aventura da sua travessia.

Por: Inês Braga

Muitos anos mais tarde, as águas do rio Douro foram acalmadas e, hoje, a sua navegação é muito mais fácil. Apesar de terem, então, vencido a rebeldia do Douro, os ‘Rabelos’ foram perdendo, gradualmente, o seu trabalho para o comboio e para o camião. As embarcações tiveram, assim, que se adaptar a um mundo moderno. As águas calmas do rio já não exigiam tamanha agilidade e, por volta da década de 80, com o desenvolvimento do turismo, o ‘Rabelo’ renasce para outra função: as caves do Vinho do Porto. As caves começam a querer recuperá-los e os estaleiros a equipá-los de motor, cabinas e outras comodidades. O ‘Rabelo’ torna-se num barco de passeio turístico, um ícone publicitário do Douro e das suas caves vinícolas.

Um estaleiro situado nas margens de Vila Nova de Gaia, junto às múltiplas caves, acompanhou de perto, a vida dos ‘Rabelos’ no último século. Foi aqui que as embarcações nasceram, cresceram e foram adaptadas às novas exigências que os fizeram voltar a navegar. A SOCRENAVAL é o único estaleiro que, neste momento, ainda constrói os originais ‘Rabelos’.
António Dixo Sousa é o sócio gerente, que, juntamente com o pai e David Alves, um seu velho amigo, são os proprietários deste estaleiro familiar que preza por manter viva a tradição do Douro há mais de 100 anos.

No entanto, foi há 30 anos que a família começou a dedicar-se à construção destas embarcações únicas. Cerca de 15 anos mais tarde, o estaleiro foi pioneiro na adaptação dos ‘Rabelos’ às necessidades turísticas, dotando as embarcações de motor, WC, serviço de refeições, coberturas de Inverno e Verão, e outros equipamentos de forma a corresponder às exigências dos turistas. Apesar das inovações, António Dixo Sousa sublinha que mantém «uma forte preocupação em preservar a construção, o design, e as aplicações das embarcações, de forma a permanecer fiel às características originais e tão especiais desta embarcação».

O estaleiro concentra 80% da sua actividade na construção de barcos ‘Rabelos’, mas não esquece as dificuldades. António Sousa não deixa de lembrar que «no início do século XIX havia mais de 12 estaleiros e, hoje, este é o único que sobreviveu». Não obstante todas as contrariedades e a falta de apoio de outras instituições, a perseverança da família conseguiu perdurar, ultrapassando, há pouco tempo, mais uma maré difícil. Aquando da construção do empreendimento ‘Cais de Gaia’, o estaleiro esteve em risco de ser demolido de forma a dar lugar ao prolongamento daquele empreendimento.

António Sousa relembra esses maus momentos apontando como causa principal uma grande falta de sensibilidade cultural por parte dos responsáveis: «diziam-me que o estaleiro tanto podia ser ali como noutro sítio qualquer, que não viam qualquer relação especial com o local...» Ora, na opinião do proprietário da SOCRENAVAL, «isso será quase como dizer que as gôndolas italianas podiam ser feitas na China...!», reforçando que a relação com o rio e com as caves é essencial para manter vivo este símbolo cultural.

Nesta contenda, foram muito importantes todos os apoios que, em conjunto com os órgãos de comunicação social e o apoio governamental do ex-presidente da Junta de Freguesia de Vila Nova de Gaia, Fernando Peixoto, mobilizaram a opinião pública e os órgãos centrais para esta questão tão sensível. Hoje, António Sousa refere que não existe qualquer ressentimento, considerando que «o Cais de Gaia foi muito importante para a animação, visibilidade e rentabilização da zona».

Neste momento, as Caves de Vinho do Porto são candidatas a Património Mundial, o que possibilita perspectivas de crescimento para a SOCRENAVAL, nomeadamente, a criação de um outro estaleiro na zona da Afurada. Por agora, os barcos ‘Rabelos’ são utilizados, uma vez por ano, na Regata de S. João que é promovida pelas Caves, num esforço para impedir a degradação das embarcações.

À excepção dessas poucas horas por ano em que se vêem a navegar no rio, permanecem fundeados no Douro, servindo de suportes publicitários. De acordo com António Dixo de Sousa, «seria interessante animar o rio, organizar formações e cursos para ensinar as pessoas a navegar os ‘Rabelos’, organizar mais regatas». De facto, não há falta de interesse de estrangeiros que procuram, cada vez mais, partir num ‘Rabelo’ à descoberta do Douro. E também estes visitam o estaleiro, questionam os processos de construção das embarcações e interessam-se pela sua preservação.

Todavia, não são só os turistas que procuram este estaleiro e tentam saber da continuidade deste ícone portuense: também os órgãos de comunicação social estrangeiros o fazem. «É preciso que as pessoas se virem para o rio», afirma António Sousa. E talvez, assim, as pessoas passem a sentir as águas do Douro e a conhecer os seus recortes, navegando nos seus barcos, que há tantos anos, desenham o seu percurso.

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