26 junho, 2004

Associação de Albergues Nocturnos do Porto

No Porto, existem três associações de Albergues Nocturnos do Porto (AANP). A mais recente das facções pertence à Santa Casa da Misericórdia. O seu objectivo é simples: recolher pessoas por caridade, para pernoitar.

Por: Ana Pinheiro

A Associação existe desde o dia 1 de Dezembro de 1881, tendo sido fundada por D. Luís I, e funciona na rua dos Mártires da Liberdade, no Porto. Hoje, trabalha em parceria com o Albergue Nocturno de Campanhã. O espírito é de complementaridade: em Campanhã, servem-se almoços; as outras refeições são feitas em Mártires da Liberdade, onde também é possível desenvolver terapias ocupacionais para os interessados.

Nestes albergues, os sem-abrigo têm direito a regalias individuais como pijama, toalha e conjuntos de higiene. Na instituição, eles podem jantar, dormir e tomar o pequeno almoço. Tudo isso durante um período de três meses. «Ao fim desse tempo, é óbvio que não os vamos mandar embora...! Alguns estão connosco há mais de um ano», confessa-nos José Luís Costa Mendes, presidente da AANP.

«Desde 1998, temos uma equipa espectacular de reinserção social que faz a triagem diária. Uns são voluntários, outros são estagiários da Universidade Fernando Pessoa. O grupo inclui uma socióloga, duas assistentes sociais, duas psicólogas e uma médica», diz Costa Mendes. A entrada é das 18 às 20 horas, e todos passam pela Assistente Social, Psicóloga e Médica. Quer venham apenas para jantar, ou por uma noite, e nunca mais voltem.

No albergue, a limpeza e a organização, são evidentes. «Como sabem, aqui entram os sem-abrigo. Exigimos o máximo de limpeza. Todos os meses temos uma equipa de desinfecção. Todos os cuidados são poucos!» esclarece Costa Mendes.

Contudo, a pensar noutro tipo de necessitados, o Albergue está igualmente associado a uma Residência Universitária. «Foi a pensar nos estudantes. Muitas vezes, para além de virem para uma cidade desconhecida, vivem em condições miseráveis e sujeitam-se a pagar um preço alto. Tendo instalações, fizemos obras e abrimos uma Residência Universitária, com dois quartos individuais, três duplos, uma sala, cozinha equipada e casa de banho. Os 150 euros que os estudantes pagam mensalmente incluem água e luz. Só pagam o gás», afirma Costa Mendes.

Cinco andares de conforto

No rés-do-chão do Albergue, fica a cozinha, dona duns tachos enormes e brilhantes. Enquanto o presidente espreita para dentro de deles e investiga - «Deixa cá ver o que vai ser o jantar...» - eu dou por mim na sala de jantar. «Recebemos diariamente cerca de 55 homens, 10 senhoras, oito mães com crianças, e dois casais», explica Costa Mendes.

O primeiro piso do edifício fica a sala de espera, o Gabinete de Reinserção Social e o Gabinete da Direcção. Nos restantes três pisos encontramos os quartos (com cerca de 114 camas), todos equipados com armários individuais e casas de banho. Nas águas furtadas pernoitam as mães, os bebés, e os casais. Nesse espaço existe uma cozinha equipada. «A maior parte das mães e dos bebés que aqui pernoitam vêm da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima», refere Costa Mendes.

«Quais são os apoios que têm?» - a pergunta pareceu-me inevitável, constatando o esforço financeiro que deve ser dispendido.«Felizmente, temos benfeitores: os sócios e a Segurança Social, que fornece 60% dos custos estimados. Mas este é um acordo atípico... Depois, temos parcerias informais com o Hospital Maria Pia (que nos fornece camas e carrinhos de bebé), com o Hospital de S. João, o de Santo António, o Magalhães Lemos», explica o presidente.Prosseguimos a visita guiada. «Como vê, tem aí um balcão de self-service, mas alguns, por vezes, chegavam tão drogados ou embriagados que acabavam por entornar, no percurso que vai do balcão até à mesa, tudo o que ia no tabuleiro. Optámos por colocar o pessoal da casa a servir as refeições», diz, sorrindo, o presidente do Albergue.

Nas traseiras do edifício, existe um grande quintal. «Já foi cultivado por um indivíduo que andava fugido das autoridades. Um dia, a polícia bateu-nos à porta e ele fugiu. Nunca mais soubemos dele», diz Costa Mendes. No piso térreo, há ainda uma despensa cheia de vitaminas para os sem-abrigo e um compartimento dividido entre a lavandaria e uma sala de roupa.

Santos da casa que fazem milagres

O padroeiro do albergue é Santo António. «Milagreiro!», remata Ana Rosa, a funcionária mais antiga do albergue, com 40 anos de trabalho. «Até há alguns anos, esta casa era o único albergue da cidade do Porto. Na noite de Natal, enchia. Já não havia camas. Num desses anos, quando damos por ela, não havia pão. Num acto de aflição, virei-me para o nosso Santo António, e disse-lhe: "Tantas pessoas que querem comer esta noite! tenho sopinha, mas não tenho pãozinho para lhes dar!". Passados cerca de dez minutos tocaram à porta: era uma carrinha com sacos de pão!», recorda Ana Rosa.

Esplendores e misérias

No albergue é preciso chave para tudo. «Mesmo assim, alguns sem-abrigo ainda nos conseguem roubar, arrombando portas. Viu o micro-ondas lá em cima? Já não têm conta os que foram roubados e qual a solução para não os roubar!» diz, com evidente tristeza.

Há cinco anos que Elsa é empregada de limpeza nesta associação. Já teve o céu como tecto. Acabou ficando por ali: «Não quero falar no passado», disse em tom sério. «Adoro trabalhar aqui. Faço o horário normal, e vou dormir a Campanhã». Adora as pessoas com quem trabalha e as que visitam o albergue: «Agora vêm cá mais pessoas jantar, desde que fechou o centro ‘Coração da Cidade’. A comida lá era muito boa», confessou, mas sem adiantar mais conversa ... tinha de ir comprar pão.

Goretti Almeida, está neste albergue há quatro anos, como responsável permanente. «Durante 24 anos trabalhei como despachante. Mas a profissão entrou em extinção e fui despedida. Perguntaram-me se queria vir trabalhar para aqui. Não hesitei e, até hoje, não me arrependo». Uma lágrima corre-lhe pelo rosto, antes de finalizar: «Adoro o que faço!».

Um testemunho sem-abrigo

Muitos sem-abrigo andam fugidos da polícia, outros, não gostam de falar com desconhecidos. São indivíduos que, por vezes, até fogem de si próprios. Paulo Guimarães, 29 anos: «Trabalho nas obras, mas torci um pulso e agora não faço nada», riu-se, e acendeu um cigarro. Paulo frequenta o albergue porque os pais vendiam droga em casa: «Esse modo de vida nunca acaba da melhor maneira. Eu bem avisava, não me ligavam nenhuma. Até que, um dia, foram presos e a casa foi apreendida». Paulo levantou-se, disse que regressaria para continuar a conversa. Nunca mais o vi.

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